Desejo e Morte: O Efeito Frankfurt



Algures entre o final da década de 1910 e o inicio da década de 1920 o jovem realizador Soviético Lev Kuleshov (na altura com pouco mais de 20 anos mas já diretor do Instituto de Cinematografia Gerasimov a primeira das grandes escolas teóricas de cinema), inicia uma série de demonstrações onde, entre diversos exercícios cinematográficos, exibiu aquela que seria uma das mais importantes experiências da história de cinema.

O Efeito Kuleshov, como passou a ser denominado, consistia num exercício aparentemente simples de montagem, em que o realizador se propunha a demonstrar numa pequena curta-metragem, três estados emocionais do ser humano, passando esses mesmos estados da tela para o espectador.

Para a sua experiência, Kuleshov convidou o mais famoso ator da altura: Ivan Mozzukhin, a grande estrela do cinema mudo da era Czarista. A curta consistiria num grande plano de Mozzukhin, intercalado com uma imagem de um prato de sopa, de uma jovem semi-nua e de um caixão de uma criança. A ideia era, que com apenas o seu talento e sem o recurso de qualquer tipo de palavra ou artificio, que o ator conseguisse transmitir no mesmo filme as sensações mais primordiais humanas da fome, desejo/luxuria e tristeza/medo.

Lev Kuleshov (1899-1970)

Segundo o realizador Pudovkin (que se auto-intitularia anos mais tarde co-autor da experiência) o publico saia da sala a gabar os dotes de Mozzhukhin. Como era possível que um ator conseguisse tal feito? Certamente que só estava ao alcance de alguém do seu gabarito, transmitir uma panóplia tão vasta de sensações e emoções utilizando apenas a sua expressão facial.

Nada de particularmente extraordinário para um ator talentoso, não fosse o facto do plano do rosto de Mozzhukhin, utilizado por Kuleshov ser sempre o mesmo.
O Efeito Kuleshov

O realizador provava desta forma que era a alternância  dos planos, entre a expressão neutra do ator  e as outras imagens, e não a capacidade representativa que provocavam no espectador emoções diversas. um triunfo da montagem.

Nascia assim a Teoria da Montagem do Cinema Soviético, com Kuleshov a provar que as reações do espectador eram provocadas por um conjunto indissociável de factores, não apenas pela história narrada, mas igualmente pela forma como as imagens eram mostradas, editadas e pelo próprio passado emocional de quem assistia ao filme, que criava uma relação pessoal com as imagens que passavam no ecrã.

Eisenstein: O homem da máquina de montar

A Escola Soviética encontraria o seu expoente máximo em Sergei Eisenstein, que exploraria até à exaustão todas as probabilidades técnicas desta teoria, com feitos tão notáveis e incontornáveis como a célebre cena da Escadaria de Odessa de O Couraçado Potemkin (1925).

O Cinema de Montagem Soviético encontraria um final precoce quando Stalin, em guerra aberta com os artistas da revolução, proclamou que este método de fazer cinema era incompatível com a nova doutrina artística soviética de realismo socialista.

Mas a proibição de Stalin, não travou no entanto o poder da montagem, nem os ensinamentos de Eisenstein, Kuleshov e Pudovkin, e não tardou para que a sua utilização chegasse a Hollywood e se tornasse num método de linguagem corrente de todo o mundo do cinema.

Avançamos aproximadamente cinco décadas para encontrar uma ligação direta entre o Efeito Kuleshov e a concepção publicitária e cinematográfica de Stephen Frankfurt.

Frankfurt: Still The Quiet Persuader

Defensor que filme, lettering, poster e trailer deviam ter um fio condutor comum, com o qual o publico se identificasse e criasse desde cedo uma empatia,  tal como Kuleshov, também Frankfurt percebeu que a reacção do espectador, a sua vontade de ver um filme e de gostar do mesmo, estava relacionada com uma diversidade de factores, e muito em particular com o passado emocional de cada individuo.

É inegável que da sua experiência em publicidade Frankfurt provou que sabia vender um produto e chamar a atenção do grande publico como poucos. Mas numa análise rápida da sua passagem pela sétima arte, e observando algumas das suas campanhas de cinema mais celebres e em particular os seus posters encontramos não só um uso recorrente de alguns temas (com a sua obsessão por lábios), como um piscar de olho aos mesmos três motivos primordiais que Kulshov celebrou no seu efeito.

Essas ideias estão essencialmente  patentes em três campanhas: A Semente do Diabo (1968) Os Corredores da Montanha (1969) e Emmanuelle (1974).

Com a Semente do Diabo, Frankfurt regressava a Hollywood após a primeira experiência Na Sombra e no Silêncio (1962). Tinha pela primeira vez controlo total sobre a campanha de lançamento de um filme, e aplica a sua ideia de uma campanha unificadora, lançada em várias frentes, todas relacionadas com o filme.

Do poster, ao tagline "You'll pray for Rosemary's baby", passando pelo trailer, há todo um fio condutor, que parece contar uma história antes do espectador ver o próprio filme, uma história que o prepara o para o espectáculo enervante de terror que o espera.

É justo dizer que o poster tem tanto de influência das sobreposições fotográficas de ManRay (ou até mesmo Mélies) como a influência de Kulechov. Da mesma forma que a autoria formal dos mesmos pode ser atribuida a Phillip Gips, o designer que trabalhava directamente com Frankfurt na época. Mas duas das principais ideias ideias primordiais pretendidas por este homem de Madison Avenenue estão lá: A luxuria/desejo e o medo/tristeza.


O rosto feminino (Mia Farrow) deitado num misto de submissão e preocupação, que subentendem um leito, e da mesma forma o desejo, a luxuria e a noção medieval de resgatar a donzela em perigo, os lábios que aguardam um beijo salvador como uma princesa de uma fábula. Esta imagem ocorre em sobreposição ao carrinho de bebé (e existe algum carrinho de bebé mais famoso que o de Eisenstein em O Couraçado Pontemkin?), sozinho numa falésia (falésia esta que quase acompanha em forma, o rosto de Farrow), abandonado num cenário escuro e nebuloso, um prenuncio de mal e de morte. Noções que ganham força maior no trailer promocional do filme (e à época banido em certas salas).


Passado um ano, com Corredores da Montanha, Robert Redford num dos seus primeiros filmes como co-produtor entrega o lado gráfico e promocional a Frankfurt, que tem a vantagem de poder trabalhar com as experiências adquiridas pelo público um ano antes, o tal passado emocional que Kuleshov referira. Quando observados lado-a-lado, é inegável que este é um trabalho oriundo das mesmas mentes criativas de A Semente do Diabo, mas curiosamente o conceito base do poster, apesar de mais simples e de linhas mais limpas, aprofundam as ideias lançadas pelo seu antecessor. 


Defensor de que "less is more", o poster de Corredores da Montanha é o exemplo máximo das ideias de Frankfurt de passar a mensagem com simplicidade. a estrela do filme aparece menos do que em A Semente do Diabo, mas o suficiente para sabermos que se trata de Redford. A imagem é passada quase como um sonho, ou uma lembrança e novamente é feita com sobreposições, e com especial destaque para os lábios, colocados no centro como uma continuação de montanha: Uma gigante, incontornável e definitiva fonte de desejo. Igualmente ao centro, quase imperceptível e a deixar-se engolir pela dimensão grandiosa da natureza está o homem que desce a perigosa montanha, mais uma vez o desejo, o medo e a morte estão presentes (falta em ambos os posters a representação da fome. mas numa época em que os Estados Unidos se viravam cada vez mais para uma política de consumo, a fome perde espaço para as outras duas sensações primordiais de sexo e morte). Mas para lá das sensações que a imagem nos provoca, conseguimos perceber uma história, ou pelo menos ter uma noção do protagonista do filme: Um homem solitário e determinado, dividido entre o amor e o confronto com a natureza, que vive sempre no limite. O filme falharia o seu objectivo de ser um sucesso de bilheteira (estreou na mesma altura de O Cowboy da Meia-Noite), mas ainda hoje o poster (premiado) é visto como um dos mais emblemáticos da época.

Por altura da estreia de Emmanuelle, Frankfurt já era um nome estabelecido em Hollywood e o homem a quem Bob Fosse, Redford ou Woody Allen (entre outros) recorriam para promover os seus filmes (curiosamente, ou não, todos exceptuando Redford foram homens que montaram as suas carreiras em Nova Iorque). A tarefa parecia complicada: a de promover um filme erótico num mercado tão conservador como o Americano, sem recorrer a imagens explicitas. (o Poster Europeu tinha simplesmente Emmanuelle sentada na famosa cadeira de verga).


Novamente: linhas simples e uma ideia que funcionara no passado. Desta vez já não existe a sobreposição de imagens, o poster fixa-se apenas nos lábios, no corpo deitado. A noção de desejo está presente, mas também a morte, através do fundo negro, através do pequeno X que paira fálicamente sob os lábios vermelhos, que tão bem representa o proibido, o lado mais perigoso do filme. novamente uma variação sobre um tema utilizado que transmitiu uma sensação de sensualidade que por vezes faltava ao filme, e produziu uma das mais icónicas imagens do erotismo cinematográfico.

O trabalho de Frankfurt alcançaria a definitiva consagração no final da década de 70 com dois Blockbusters intemporais: Super-Homem (1978) e Alien, o 8º passageiro (1979). Curiosamente dois trabalhos onde não há nenhuma representação de seres humanos (ou não fossem eles filmes sobre extra-terrestres).  Mas em ambos mantiveram-se as premissas de toda uma obra: Less is More e a certeza que nada prende a atenção do público como a alusão primordial do desejo e da morte. 

MS

Comentários

Barreira Invisível Podcast