Le long demain
Morreu o Moebius. Como é que um tipo escreve sobre isto? Como é que um tipo começa a escrever sobre isto? Talvez com uma confissão arrepiante.
Está mais triste o cinéfilo em mim, do que o amante de banda desenhada. Heresia!, dirão. Talvez. Pretexto para analisarmos em conjunto, como pode isto ser. Ou se não pode ser de modo nenhum.
O meu primeiro contacto com a visão de Jean Giraud/Moebius foi através da banda desenhada e não do cinema. Blueberry para ser mais preciso. Talvez comece aí a explicação. Hoje consigo compreender a importância para a banda desenhada e até para a evolução da narrativa western, que Blueberry reclamou. Mas na altura não me prendeu. Como não prende ainda hoje. Reconheço que é bom mas não me toca. Há coisas assim.
Mais ou menos por essa altura vi Alien e fiquei fascinado com a fotografia do filme, com a Nostromo, nave espacial onde tudo se passa, e com outras paisagens. Quando fui tentar saber mais sobre o filme descobri que um tal de Moebius era um dos principais responsáveis pela concepção dos cenários. Mas para mim Moebius era apenas um nome engraçado e não tinha nada em comum com Giraud.
Não muito depois (tudo isto aconteceu numa altura veloz da minha vida) emprestaram-me L'incal. Voltei a não fazer uma ligação emocional, com a excepção, um pouco absurda de John DiFool. Explico. Passei a conversar com DiFool como se ele tivesse ganho autonomia das histórias e do mundo de L'Incal. Para mim ele merecia estar noutro lugar. Em Lisboa, anos 90, por exemplo. Talvez a maior surpresa que esta banda desenhada me tenha trazido foi a ligação de Moebius a Giraud e de Giraud a Alien. Começava a tombar sobre mim o génio.
L'Incal deu-me, apesar de tudo, vontade de ler mais banda desenhada de Moebius. Para despistar a relação com Giraud. Não demorou muito a chegar a Silver Surfer: Parable. Para mim foi uma revelação. Era um comic, mas não era um comic. O que batia absolutamente certo com Silver Surfer, ou melhor dizendo, com Norrin Radd, que era um super-herói mas não era um super-herói: era um astrónomo que a angústia tornou filósofo. Moebius, o desenhador, apanhou-me aí.
Logo de seguida li The Long Tomorrow de Dan O'Bannon e Moebius. E aqui as coisas começam a complicar-se. É verdade que The Long Tomorrow é Moebius desenhador. Mas é também verdade que a influência de The Long Tomorrow sobre Blade Runner bastaria para que Moebius passasse imediatamente para o plano da minha cinefilia. Por essa altura já tinha visto Blade Runner e eram incríveis as parecenças. Fui investigar. E percebi o que tinha lido: uma das obras de banda desenhada a que podemos chamar, realmente, seminais. Tanto que a semente, neste caso, para além de outras, foi um dos meus filmes preferidos e um dos grandes filmes de culto da história do cinema.
Comecei a desenvolver um interesse por all-things-Moebius e isso levou-me a descobrir como estava ele impregnado nos meus gostos. De Blade Runner passei para Hayao Miyazaki, o autor de outro dos meus filmes preferidos, Princesa Mononoke. Aqui Moebius não teve qualquer intervenção, mas descobri que eram grande amigos e essa foi outra interessante epifania.
Estava disposto, contudo, a insistir em Moebius criador de banda desenhada e não influenciador de cinema. Pedi a uma amiga conhecedora que me recomendasse as obras fundamentais. Como já tinha lido The Long Tomorrow, mandou-me ler Arzach e La Garage Hermètique.
Ambas são obras-primas e não gostar delas é um sinal claro de que nunca se gostará de Moebius. E ainda assim...
Ainda assim havia qualquer coisa dissonante, entre mim e Moebius. Qualquer coisa de narrativamente dissonante, o que provocava um desencontro simultaneamente filósofico e emocional. Simplificando, o incómodo de uma relação de amor-ódio. Incómodo esse que nunca senti nas várias traduções que Moebius sofreu (ou provocou) para o cinema. Talvez porque fossem mais fáceis, mais compromissórias. Menos geniais. Talvez. O Quinto Elemento, não obstante as controvérsias, é um bom exemplo. Gostei do filme. E apesar de não ser um filme maravilhoso, há qualquer coisa nele que já me fez revê-lo algumas vezes. Não culpo Jovovich ou Willis. Prefiro culpar Moebius. Mesmo que esteja errado.
Um derradeiro exemplo: na ressaca de L'Haine resolvi investigar Mathieu Kassovitz e descobri isto, de 1991:
É a visão de Kassovitz sobre uma visão de Moebius. Pode não ser grande coisa mas adoro esta curta-metragem. Não culpo Kassovitz (para isso tenho o L'Haine). Culpo Moebius. Para mim é um génio da banda desenhada mas, culpa minha, é no cinema que gosto de o encontrar. Talvez porque na banda desenhada haja qualquer coisa nele que me assuste, que me incomode. Algo que tem que ficar guardado, ali na estante, para quando o incómodo é urgente.
Domingos Miguel
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