a nostalgia do bem


Antes de mais, e para não fazer perder tempo ao leitor a tentar perceber se o prolixo critico, afinal, gostou ou não do filme, vamos directos ao que importa: The New World é aquilo que tecnicamente costuma ser designado por “filme dum camandro”. Se preferir adjectivação mais sóbria, faça-se a sua vontade: o novo filme de Terrence Malick é belo, inteligente e de uma sensibilidade à prova de críticos. Decerto, uma das melhores noites que passaremos nas salas de cinema nacionais em 2006.
Malick, é sobejamente sabido, é um caso particular na história do cinema. Com apenas quatro obras dirigidas num período que percorre, entre o primeiro e o último títulos, nada mais nada menos que 33 anos, e inúmeras narrativas paralelas (provavelmente, já mistificadas) de abandono de projectos e desaparecimentos por decepção com a indústria. Dá-se o caso de, nas escassas vezes em que o quis provar, ter marcado gerações de espectadores, donde se segue o merecido fenómeno de culto em seu torno.
Contudo, e nestas coisas é pródiga a relação entre criadores e admiradores, poderia discutir-se, sem sombra de heresia, se esse fenómeno não virá sendo inflamado a um ponto de sobrevalorização que talvez o próprio Malick, aparentemente avesso a grandes espalhafatos, desdenhe. Badlands é um belíssimo primeiro filme, com Martin Sheen e Sissy Spacek em auspicioso princípio de carreira, mas não uma obra incontornável; quanto a Days of Heaven, não teve o critico ainda o prazer de assistir; e The Thin Red Line, com muito de magistral, tinha um trailler de um minuto a provar que conseguia, em 60 segundos, contar aquilo que o filme prolongava para lá das duas horas e meia.
The New World chega oito anos depois. Nesse contexto de culto, com a exorbitância da paixão dos malickianos em torno de The Thin Red Line, e com um estranho calendário de distribuições a deixá-lo perdido em cartaz na época cinematográfica mais desinteressante do ano, uma espécie de defeso, se quiséssemos importar o jargão do futebol.
Isto talvez justifique as reacções díspares que tem suscitado. O público ainda faz o seu caminho em direcção às salas. E a critica, a outra, não pareceu enamorada. E tem mesmo, de algum modo, dado a ideia de se reclamar ofendida por Malick ter repetido truques de The Thin Red Line que, assevera ela, aqui já não resultam.
Ora, este critico não compreende isso. Como amar The Thin Red Line e achar The New World vulgar? Como não compreende aqueles gusvansantistas que matariam por Elephant e desprezam Last Days. Mas adiante. Essa seria matéria para texto completamente diferente.
The New World é, em termos informativos, a história de três embarcações britânicas que, em 1607, desembarcam na Virgínia e fundam a colónia de Jamestown. A maioria dos colonos sucumbe à vida selvagem e, quando o capitão John Smith é encarregue de negociar alimentos com os nativos, é capturado e mantido cativo, até acabar por se apaixonar por Pocahontas, a filha do rei. A partir daqui, contar mais seria demasiada intromissão na narrativa do filme.
Mas The New World – não se esperaria o contrário, calculo – não é obra muito interessada na informação. É, antes, a afirmação de Malick no território dos poemas de imagens. Não há um só fotograma de película que não seja, em si mesmo, muito belo. Depois, é um filme sobre a linguagem. Pocahontas aprende Inglês pela boca do capitão Smith. As palavras que usa são repetidas das suas e combinadas de modos diferentes para que, de vocábulos simples, exprima sentimentos complexos. Num terceiro plano, é uma obra perpassada, de início a final, por aquilo que podemos descrever como a nostalgia do bem. A este nível, ocorre-nos, imediatamente, outro director, em tudo diferente de Malick, excepto neste particular: M. Night Shyamalan e o seu belíssimo The Village. Numa quarta e derradeira dimensão, The New World, Novo Mundo, aproveita a circunstância da progressão da descoberta da América para discorrer acerca da descoberta do amor. Nesse sentido, o reencontro entre Pocahontas e o Capitão Smith não deixa margem para grandes dúvidas: “Encontraste as tuas Índias?”, pergunta ela. Ele nega. E complementa: “Talvez lhes tenha passado mesmo ao lado”, concluindo ela, antes de regressar para o marido que, agora, descobre como tal, “Hás-de encontrar”.
Um filme maior, The New World, apesar dos olhos de carneiro mal morto (de novo, falando tecnicamente, é claro) de Colin Farrell, e também graças a Christopher Plummer (este ano, intensamente recuperado pelos directores), ao pequeno papel do grande Christian Bale e à soberba, e verdadeira protagonista da obra, Q’Orianka Kilcher (aviso: a miúda tem 16 anos).
AB

Texto publicado na Atlântico nº 15.

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