A history of violence (fora de série) - Edie&Tom revisited

Sem prejuízo de ainda ir ver uma terceira vez A history of violence e poder, então, confirmar com os meus olhos os olhares a que me referirei neste texto, gostaria de revisitar alguns dos temas que fui espartilhando ao longo dos vários números da série dedicado ao último filme de Cronenberg.

A razão é dada por um atento email de uma leitora e o critério é simples: a hermenêutica dos olhares entre Tom e Edie. Sendo a tese por criticar a de que, entre o olhar de anunciação do enamoramento de Edie por Tom, a que este se refere na cena cheerleader e o último olhar de Edie, no regresso de Tom à casa e à mesa familiar, há uma identidade que dá coesão ao filme e, em fim, o encerra e/ou explica.

Assim, Tom reconheceria, ainda e depois de tudo, o mesmo olhar de Amor no rosto de Edie, olhar que seria simultaneamente um enlace, no regresso a casa.

Creio que, obviamente, estamos aqui no domínio da (boa) especulação narrativa que o cinema nos pode proporcionar e de que tanto uso e abuso nos meus textos, exemplo paradigmático os textos sobre A history of violence. Mas não creio que possamos fazer mais do que especular, isto é, não é possível pelo filme come full circle, e, com isso, garantir que a identidade de olhares nos proporciona uma redenção final e simples.

Desde logo porque, embora referido, nunca entrevemos o primeiro olhar de Edie, aquele em que Tom percebeu o enamoramento da futura mulher. Falta-nos aqui um factor de comparação que mesmo a belíssima cena que se sucede ao sexo cheerleader, de Edie e Tom entrelaçados a uma translúcida e deslumbrante luz, não resolve: sempre aparecem de olhares desencontrados, que nada revelam.

Quanto à cena final, recordado o aviso que faço no início do texto, creio que o olhar de Edie é, sobretudo, um olhar de reprovação. Embora creia, também, que se trata de uma reprovação que já tem por trás um perdão implícito, ainda não o denotando, para manter um certo tom maternal de castigo e punição pela traição à confiança, exercida por Tom. Isto é, Edie vai perdoá-lo, desde logo, claro, porque o ama, mas não é na cena da mesa que o revela, nem a Tom nem a nós; ou, pelo menos, não o revela explicitamente (daí entender que é preciso o anjo louro). O que faz, isso sim, é recebê-lo em silêncio (creio que é aí que está o indício de perdão e aceitação) embora o olhar seja, ainda o de reprovação, duro e magoado, como que querendo acentuar bem que, embora o aceite, não esquece, não menoriza o que aconteceu.

Terá sido este o olhar que Tom viu alguns anos antes e onde reconheceu o amor de Edie por si? Acho difícil e a aceitá-lo apenas o poderia fazer parcialmente. Talvez, mas apenas talvez, uma parte do olhar de Edie (se bem que a parte compõe o todo) contenha Amor. Tê-lo-á de conter necessariamente pois é antecâmara de um perdão que só pode, no limite, ser explicado por ele. Talvez Tom, concedo, tenha reconhecido parte do olhar de enamoramento. Mas seria preciso acrescentar que nesse olhar reconheceria, igualmente, mágoa, raiva, desencanto. Ou seja, mantenho a ideia de que Cronenberg, através de Edie, não quis resolver tudo, claramente, na última cena, com um último olhar. Deixa-nos indícios que o wishful thinking de cada um, meu, da Susana e de todos os espectadores, poderão elaborar e desenvolver, com isso, tornando A history of violence uma história inacabada, interminável, senão quanto à parte da violência, pelo menos quanto aos seus efeitos uma vez ela cessada.

Quanto à outra conversa, sendo outra (refiro-me, à cena das escadas), penso que são duas coisas diferentes. A perpectiva de domínio a que aludi e a única que realmente me interessa é o domínio psíquico da cena. O corpo, embora importante, é relegado para instrumento e isso mesmo se torna: instrumental. Sendo Tom mais forte (e violento) é natural que de um ponto de análise de domínio físico se tenha de concluir pela superioridade de Tom. Mas não era a isso que me referia. Pensava num domínio compreensivo, global. Quem conduz os destinos (da cena). E aí parece-me, claramente, salvo o devido respeito, que é Edie que domina, mesmo se o seu corpo com isso sofre. É ela que manipula os corpos e as vontades dos corpos, tanto do seu, como do de Tom. Ela quer o que ali acontece. Ela conduz o que nas escadas se faz. She's in control para parafrasear, pela negativa, Ian Curtis.

Por último, é apenas fatal que eu, que passo boa parte do tempo a dizer mal dos pós-modernistas e que tenho em (algumas coisas de) Lévinas a excepção a essa regra própria (no que toca, que é muito, ao estudo do Outro), seja criticado pelas referências, por certo entediantes ao filósofo lituano/francês. Não obstante, e por impulso de lealdade, I stand by my Lévinas.

Nada como um bom email estimulante. Grato.
DM

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