Algumas notas sobre The Phantom Thread

Ontem almoçando com um grande amigo algumas horas antes de ir ver o The Phantom Thread e comentando o facto com ele fiquei obcecado com o seu comentário "de que eu iria gostar porque era mais emotivo a apreciar filmes e ele mais racional e havia qualquer coisa no filme que não batia certo, pequenos pormenores". 

Fui para o filme já condicionado por este comentário e dizendo a mim mesmo que não deixaria as emoções levarem a melhor e descobriria, friamente, as falhas do filme.

Numa cena de casa de banho, no final do filme, lá creio eu ter encontrado do que falava o meu amigo, mas não estou completamente certo, pois mais tarde, refletindo sobre essa cena - que na altura me pareceu deslocada e até de mau tom - pareceu-me que encaixava, que era o pormenor quirky que confirmava a obra-prima, como a ausência de sobrancelhas na Mona Lisa.

É certo que este final tem muitas boas razões para apelar às minhas emoções ou, talvez melhor, aos grandes temas da minha vida. E os grandes temas das nossas vidas são o que nos liga à arte e fazem de nós seus apreciadores ou detratores. Ou pior, indiferentes. Mesmo quando a relação é pouco ou nada consciente (talvez sobretudo aí).

The Phantom Thread é uma párabola sobre a conciliação da solidão do génio criativo, estereótipo que o filme toma e pressupõe, com a exigência relacional do amor. Do amor, não da paixão. Há pouca paixão - carnal - no filme, talvez porque assim se construa o mecanismo para mostrar o amor, que é algo mais subterrâneo, menos óbvio, e por isso facilmente obnubilado pela exuberância da paixão. Além disso há outras paixões com que o filme se ocupa. O leitmotiv do filme desenvolve-se sobre um universo de requinte, tendo como mote a alta costura londrina, nos anos 50.

Há uma frase em Sete Cartas a Um Jovem Filósofo que sempre me impressionou desde a adolescência. Cito de cor: "quem tem a obra, a obra tem-no". Eis o ponto de partida para The Phantom Thread. O repto do filme passa pois por descobrirmos como Paul Thomas Anderson resolve esta possessão e se Day-Lewis a torna aceitável. Este último pressuposto é quase um sacrilégio pois a Academia já estava em tempo de criar uma categoria autónoma denominada "Melhor Daniel Day-Lewis num filme com Daniel Day-Lewis", em que o actor concorreria contra o seu passado. Day-Lewis ocupa um espaço entre a representação teatral e cinematográfica (seria interessante vê-lo em televisão) que nunca vi nenhum ator ocupar. Isso podia fazer dele demasiado teatral para o cinema e demasiado cinematográfico para o teatro. Mas parece-me que faz exatamente o oposto. No caso, torna melhor o cinema ao contribuir para tornar o ecrá diáfano. Daí que talvez haja já qualquer coisa de injusto em ter Day-Lewis num filme pois tudo o resto se modifica na sua presença e torna-se difícil ajuizar as demais representações, o argumento, a realização. Estas duas últimas ficaram a cabo de Paul Thomas Anderson que parece ter uma realização segura, sob a forma de um tributo quer a uma época, quer ao próprio Day-Lewis. As duas atrizes que acompanham o ator conseguem, contudo, encontrar o seu lugar próprio e o filme ganha com isso. Diria que têm mais protagonismo em The Phantom Thread do que Di Caprio conseguiu em Gangs of New York. Mas, enfim, não é fácil, reconhece-se.

A forma como a concilição entre a solidão do génio e a partilha do amor é possível ou resolvida no filme fica para discussões futuras, em que incluirei o papel daquela cena da casa de banho, para mim chave pela sua intimidade, pela mudança de estilo, até um pouco a roçar a escatologia. É uma solução possível, uma que não é desconhecida de vários casos que conheci à minha volta e que torna por isso interessante a escolha de Thomas Anderson que assim, por uma vez, suplanta em protagonismo Day-Lewis.

Claro que o mais interessante é a reflexão, é a apresentação desses dois mundos, que o realizador e as três personagens principais vão apresentando ao longo do filme, numa inevitável rota de colisão. O modo como Scott Thomas encara os destroços e permite (ou não) redenções é o menos importante. Se nos diz alguma coisa esse tema da convivência desses dois mundos (e já se percebeu que a mim me diz muito) então The Phantom Thread é um grande filme. Sobretudo para quem aprecia uma peça de roupa feita à mão, mesmo se no meu caso são fatos.

Talvez o meu amigo tenha razão, as emoções levam-me a melhor na análise de filmes, quando se alojam, como exemplos, nas minhas reflexões existenciais. Mas eu tinha reconhecido isso logo ao almoço e por isso este filme também teve esse outro prazer de pela enésima vez me recordar a cumplicidade revigorante da amizade. Como, com outras cores, o amor.
DM

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