o cinema contra as cordas


A propósito da estreia de “Southpaw” (esta semana) e dos 40 anos de "Rocky" (em Novembro), esta é a história do que acontece quando boxe e cinema se encontram no mesmo ringue.

Há muitos, muitos anos, o cinema descobriu que as câmaras adoram o ringue. Antes do “La Lune à un Mètre” ou do “Barba Azul” de George Méliès. Antes mesmo dos irmãos Lumière, dos seus míticos “Chegada de um Comboio à Estação de Ciotat” ou da “Saída da Fábrica Lumière em Lyon” e dessa bela época em que se confundia um título com uma sinopse. Em 1894, já William KL Dickson, inventor escocês e protegido de Thomas Edison, filmava o combate entre Jack Cushing e Mike Leonard. 37 segundos, obviamente a preto e branco, obviamente mudos, de pura história do cinema. E ganhou o Leonard, já agora.
Não era uma curiosidade arqueológica. O boxe dava excelente material cinematográfico – como comprovaria, ao longo dos anos, a adesão dos grandes. Em 1915, Charlie Chaplin filma-se a si mesmo enquanto pugilista – ou uma imitação disso – n’ “O Campeão”. E em 1927, Hitchcock filma, ainda no tempo do mudo, ainda nos anos de Inglaterra, a longa “O Ringue”, cuja storyline rezava assim: “Two boxers compete for the love of a woman.” Querem mais cinema em menos palavras do que isto? 42 caracteres, incluindo espaços, e conseguimos ver o filme inteiro.

O boxe não é apenas tremendamente visual, naturalmente poderoso e uma oportunidade incrível para dois actores encostarem o espectador – no mais radical sentido da expressão – às cordas. Ele permite, como muito poucos temas, que a estrutura clássica do argumento assente sobre ele como se nunca tivesse servido outro fim. O tipo que não é ninguém e, de repente, pode subir ao topo do mundo. O vingador que fará justiça pelas próprias mãos. O indivíduo que tudo perde no primeiro acto, que vai de obstáculo em obstáculo no segundo, em busca de uma oportunidade para a redenção que encontra no terceiro, no momento climático do combate que o há-de colocar, por fim, diante do arqui-inimigo. O sangue, o suor e as lágrimas. Os bem-amados a assistir e a sofrer, dando rosto ao espectador na escuridão da sala. A dor e a glória em câmara lenta.

“Adrian! Adriaaan!”

“Rocky” é, provavelmente, o primeiro título que vem à ideia quando pensamos em filmes de boxe. A apresentação à sociedade do matulão bem-intencionado Sylvester Stallone, no papel que se confundiria com toda a sua vida (onde acaba Sly e começa Balboa é pergunta que tudo faremos por nunca saber a resposta), o treino esmurrando carnes no matadouro, a Filadélfia onde nasceu a lei da América, a mesma que dita, oficiosamente, que todos os sonhos são possíveis; e o nosso pobre herói, inchado como um inhame e já só vendo por um olho, a gritar pela amada Adrian entre a multidão. Ainda que a direcção do tarefeiro John G. Avildsen se preocupasse apenas em garantir que nada acontecia fora do plano, nunca algum de nós se esqueceria destas imagens. E a verdade é que a Academia lhe entregou, estarrecida, os óscares de melhor filme, edição e realização, apesar de estarmos em ano de “Taxi Driver” e “Network”.

Ninguém podia saber então, nesse longínquo 1976, mas “Rocky” era o começo de toda uma genealogia do cinema. Um ramo seguiu Stallone, que voltaria, pelo menos, mais seis vezes à personagem; outro foi atrás de Avildsen, que se dedicaria à trilogia original de “Karate Kid” antes de regressar a “Rocky”, em 1990, para o já decadente volume V. Outro ainda cresceu a partir da história: o underdog, em bom Inglês, o Zé Ninguém, em Português, desafiado pelo campeão Apollo Creed para disputar o título mundial, fornecia um arquétipo que actualizava o velho desafio do herói trágico aos deuses gregos e que haveria de ser citado, variado, usado e abusado até à exaustão.

“I coulda been a contender”

Em 1979 foi a vez de Franco Zeffirelli. No comovente “O Campeão” / “The Champ”, Jon Voight era um antigo pugilista que voltava a calçar as luvas para dar uma vida melhor ao pequeno T. J., o filho que tinha ainda de disputar, fora do ringue, com Faye Dunaway. Mas foi um ano depois que nasceu uma outra linhagem de filmes de boxe: Scorsese estava de regresso para vingar a derrota de “Taxi Driver” jogando no terreno do adversário. Embora a Academia ainda viesse a levar mais de duas décadas para se dignar a dar-lhe um óscar de melhor filme ou melhor realização, toda a gente sabe que, na verdade, bateu logo ali a concorrência por k.o. com o magistral “Touro Enraivecido”.

“Raging Bull”, no original por que é mais conhecido, leva os óscares de melhor edição e melhor actor principal, consagrando Robert De Niro como um dos imortais do cinema. A verdade de uma personagem dilacerada pelo medo, ciúme e raiva, o trabalho físico para crescer e subir convincentemente ao ringue e que levariam o próprio biografado Jake La Motta, aliás, “The Bronx Bull”, a dizer que, se De Niro quisesse mudar de carreira naquele momento, poderia ter dado um “fine boxer”. Tudo isto definia um novo cânone a que, dali em diante, grande actor que se prezasse aspiraria. Mas é já perto do final que “Raging Bull” revela as origens do seu ADN, quando De Niro / LaMotta gordo e acabado, sentado diante do espelho (ah, os fétiches scorsesescos), cita Marlon Brando, quase 30 anos antes, dirigindo-se em lágrimas de raiva ao irmão, em “Há Lodo No Cais”:
“You don’t understand. I coulda had class. I coulda been a contender. I coulda been somebody, instead of a bum, which is what I am, let’s face it. It was you, Charley.”
A verdade é que Elia Kazan provara que o imaginário do boxe era tão poderoso que era capaz do sortilégio de não aparecer uma só vez num filme e, ainda assim, dominá-lo, pairando sobre ele, do início ao fim.Porque “Há Lodo No Cais” era, sobretudo, o que não se via; a história do que aquelas vidas poderiam ter sido e não foram; o corpo de pugilista não praticante de Brando, aliás, Terry Malloy, que poderia ter subido à glória e ficara a fazer fretes nas docas. Que poderia ter sido um campeão e ficou um vagabundo – precisamente o trajecto oposto ao dos plots da genealogia “Rocky”.

Em nome de Rocky, LaMotta e do espírito de Ali

“Rocky” e “Raging Bull”. Stallone e De Niro. Os patriarcas de duas estirpes diferentes que o tempo acabaria por juntar numa homenagem despretensiosa e com o coração no sítio certo chamada “Ajuste de Contas”. Rocky Balboa, ainda que inadvertidamente, deu origem a uma dinastia de clássicos de videoclube, no tempo em que bastava substituir o boxe por outro desporto de combate qualquer, desfazer em água e servir. E assim nasceram, entre muitos outros, os já lembrados “Karate Kid” de Ralph Macchio (Daniel) e Pat Morita (Mr. Miyagi) ou o incontornável “Kickboxer”, que, na verdade, é sobre muay thai e que nos apresentou o menos cinzento e burocrata dos cidadãos de Bruxelas, a.k.a., Jean-Claude Van Damme. Juntas, estas personagens puseram os miúdos dos anos 80 a equilibrarem-se numa só perna no pátio da escola, as mães a esfregar e engomar kimonos para nada e fixaram, para a posteridade, alguns dos mais infelizes cortes de cabelo da história da espécie humana.

Já do lado “Raging Bull” da família, viriam filmes mais sombrios, frequentemente carregados aos ombros por actores já consagrados, mas ainda em busca daquele mesmo bilhete extra para a imortalidade tirado por De Niro. Foi assim, sob esse ascendente touro, que o cinema nos deu a bravíssima Maggie Fitzgerald de Hilary Swank, a “Million Dollar Baby” de Clint Eastwood (mais um dos maiores a pegar na câmara para filmar o ringue). O Jim Braddock de Russell Crowe, abrindo ao soco o caminho para fora da Grande Depressão, no “Cinderella Man do até então (e de novo desde então) anódino Ron Howard. O Micky Ward de Mark Wahlberg, mas, sobretudo, o Dicky Eklund de Christian Bale com que David O. Russell tanto prometeu para nunca depois cumprir naquele delicioso “The Fighter – O Último Round”, de 2010.
Hoje, que a era dos clubes do vídeo está oficialmente extinta. Hoje, que De Niro insiste em desbaratar o capital de mito em filmes de sábado à tarde. Hoje, que Stallone ganhou merecido respeito por fazer um trabalho honesto de actor debaixo de um rosto ainda mais massacrado pelo botox do que pelo boxe. Hoje até, que os dois mais lendários pugilistas a fingir do mundo já aceitaram rir-se de tudo isto e defrontarem-se, olhos nos olhos, rugas nas rugas, no mesmo filme, o tal que Peter Segal dirigiu em 2013. Hoje, “Rocky” e “Raging Bull” já não estão em cantos opostos do ringue; são uma só e mesma tradição do cinema, a dos filmes de boxe, aqueles onde o CGI de pouco vale. Aqueles, daqueles poucos, que desencostam o espectador da cadeirinha e o sentam na ponta, boca meio aberta, suspenso do próximo golpe.
E, atravessando-a desde o primeiro dia, corre ainda o espírito de Muhammad Ali. “O maior”, personagem que a realidade parece ter roubado à ficção, encarnada por Will Smith no “Ali” de Michael Mann, documentada por Leon Gast no aclamado “Quando Éramos Reis”, inspiração para o Apollo Creed a que regressámos este ano, na sétima instalação de Rocky, com Michael B. Jordan a perseguir o destino de Carl Weathers, seu pai no mundo paralelo e mágico do grande ecrã.
Foi nesta tradição que “Southpaw” se quis inscrever. Foi desta velha família que se tentou reclamar. Fica a vontade. Não chegam os truques de Antoine Fuqua nem o Jake Gyllenhaal mais esforçado para esconder a superficialidade esquemática do primeiro argumento do senhor Kurt Sutter para o cinema. Mas nestas coisas, como se diz, é preciso guardar respeito por quem sobe ao ringue. Para os que ficam cá fora a falar, nunca haverá cinto de campeão; talvez um sinto muito.

“E agora, campeão?”

Entre nós, fica o lendário “Belarmino” a falar pelo cinema português de boxe. Era o então jovem Fernando Lopes, em 1964, a filmar o rosto, as mãos, as grandezas e misérias de Belarmino Fragoso, um underdog real, Rocky Balboa antes de haver Rocky Balboa, pugilista que podia ter sido grande e ficou pelos fretes da noite de Lisboa. O Belarmino sobre quem paira a voz de Baptista-Bastos perguntando, no final do documentário, mais ou menos assim: “E agora, campeão?”. O Belarmino, soubesse ele Inglês, que poderia ter dito, melhor que Brando, o texto de Terry Malloy (aqui repetido como um refrão): “I coulda had class. I coulda been a contender. I coulda been somebody.”
Depois dele, pouco mais. Houve Bruno de Almeida, também em documentário, contando a história de “Bobby Cassidy”. E houve, na televisão, o Nicolau Breyner de que agora nos despedimos, na pele de João Godunha, em “Vila Faia”, primeiríssima novela nacional. Sim, talvez já não se lembre, mas remonta isto a uma época em que o protagonista de uma telenovela portuguesa podia não andar apenas em busca do amor ou do irmão gémeo, mas ter um passado obscuro nos Estados Unidos, uma história traumática relacionada com o pugilismo e a morte, e que encontraria a redenção treinando o filho da família rica a quem agora servia e o amigo – respectivamente, Nuno Homem de Sá e Vítor Norte – com direito a combate no Coliseu dos Recreios e tudo, cheio como um ovo.

O boxe e o cinema em 10 rounds

“O Campeão” (The Champion), Charlie Chaplin (1915)
“Há Lodo No Cais”, Elia Kazan (1954)
“Rocky”, John G. Avildsen (1976)
“O Campeão” (The Champ), Franco Zeffirelli (1979)
“Touro Enraivecido”, Martin Scorsese (1980)
“Quando Éramos Reis”, Leon Gast (1996)
“Million Dollar Baby” – Sonhos Vencidos, Clint Eastwood (2004)
“Cinderella Man”, Ron Howard (2005)
“The Fighter” – Último Round, David O. Russell (2010)
“Creed: O Legado de Rocky”, Ryan Coogler (2015)

“Wax on, Wax off”

Não há volta a dar. Não há filme de ringue que não tenha uma longa sequência, algures no segundo acto, em que o treinador trabalha afincadamente com o herói, transformando a pedra em bruto do início do filme no diamante que há-de reluzir lá para o final, no combate decisivo. E, embora defendamos que foi o boxe o início de tudo, impõe-se reconhecer que não houve no cinema mestre mais célebre do que o enganadoramente frágil Mr. Miyagi de “Karate Kid”.

Este vosso servo que vos escreve decidiu, ainda não há tempo suficiente, afastar-se do teclado da escrita dos livros e dos argumentos alguns finais de tarde por semana, e calçar as luvas de boxe. Não podemos, pois, acabar sem um pequeno momento Mr. Miyagi, partilhando aquilo que aprendemos em quase um ano de sopapos. Eis dez conselhos aos potenciais Rocky Balboas aí desse lado do ecrã.
  1. Não subestime criancinhas e jovens moçoilas desajeitadas. No início, magoa-nos mais quem não sabe bater do que quem sabe.
  2. Não dê abébias ao gordo. O gordo mexe-se devagar, mas tem um bracinho que pesa mais do que um atum. E ninguém quer levar com um atum pelo focinho afora.
  3. O timing é mais importante do que a velocidade (diz o meu mestre).
  4. A força vem do chão (diz o meu mestre).
  5. Quem ganha não é o mais forte, é o mais inteligente (diz o meu mestre).
  6. As mulheres enfraquecem as pernas (dizem todos os filmes da especialidade e pareceu-me que ficava bem aqui).
  7. A mão vai a 100 e volta a mil (diz um amigo batido).
  8. A cena do “wax on, wax off”” é no karaté, não é aqui. Aqui, dá direito a dentadura nova.
  9. Fazer o contrário do que dita o instinto. Virar as costas ou fechar os olhos não faz desaparecer o monstro (diz o meu mestre).
  10. E, finalmente, se tudo isto falhar, não dar o tempo perdido. Fica sempre com excelentes histórias para impressionar raparigas em jantares.
AB, publicado no Observador a 19.03.2016

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