E nós por cá... coiso - Considerações sobre um telefilme
Fiquei obviamente entusiasmado quando a RTP anunciou a sua nova série de quatro telefilmes "4 - Portugal Hoje". Quatro filmes com argumentos originais que refletem o País atual, escritos por quatro dos mais conceituados jovens escritores contemporâneos portugueses.
É uma boa ideia, já devia ter sido executada há
mais tempo. Faz falta que se fale do Portugal real e contemporâneo na nossa
ficção filmada. Um Portugal por inteiro que fuja da ideia pre-concebida de que por cá só filmamos o Bairro
das Fontainhas, os telhados de Lisboa com vista para o Tejo e as traições de
mulheres de empresários duvidosos que vivem na Quinta da Marinha.
Também faz
muita falta que a nossa programação televisiva aposte no formato telefilme.
Temos melhores guionistas a trabalhar em ficção (em
todos os géneros) do que gostamos de dar crédito, mas é sempre importante
trazer-se os escritores consagrados para a televisão e para o cinema (e
mesmo que a História e Hollywood nos tenham ensinado que raramente a fusão é
pacifica ou de sucesso, temos a obrigação de continuar a tentar).
Basta revermos dois ou três episódios de Chuva na
Areia e conseguimos sentir o que era aquele Portugal do pós-25 de Abril de uma
maneira muito mais forte e verdadeira do que Vila Faia (ou qualquer outro meio)
alguma vez o fez. E se isso acontece deve-se maioritariamente a Sttau
Monteiro e ao seu olhar de escritor (o único dos grandes da sua geração, que
não virou a cara a escrever uma telenovela).
Traga-se então o Peixoto, o Tordo, o Mexia e o valter hugo mãe para a escrita televisiva e cinematográfica (e não nos fiquemos por ai,
vamos buscar os outros também). Aumente-se a fasquia, façamos como o resto do
mundo e iniciemos agora mesmo uma era dourada da ficção televisiva!
E com todo este entusiasmo e boa vontade, sentei-me
na passada 5ª feira para assistir à estreia do primeiro telefilme da série
"4 - Portugal Hoje" e não foram necessários mais de 3 minutos para
dar por mim a perguntar-me "Mas o que raio se passou de mal com Entre as Mulheres?".
É difícil começar por um só ponto na enumeração do
que está mal e fazer a devida justiça do que foi assistir a este Titanic
audiovisual. Talvez a melhor forma de o fazer seja indicar-vos a sinopse oficial do telefilme, certamente a pior
sinopse alguma vez escrita e que tem como único ponto redentor preparar-nos
qualitativamente para o programa que se segue.
Entre as
Mulheres são 50 longos minutos de uma curta-metragem de primeiro ano de
faculdade que chumbou com um 3 valores: A imagem é má, o som
é péssimo a découpage questiono-me se existe e a direção de actores...
enfim.
Há uma história, passa-se no Alentejo profundo,
numa aldeia onde são as figuras femininas que predominam, quase todas elas de
idade avançada, e onde a protagonista vive no drama de ter contraído SIDA do
seu agora falecido marido. há também uma rapariga mais nova, meio apatetada,
grávida não se sabe bem de quem... e joga-se muito ao totoloto, e aparentemente
é isto.
Quero acreditar que o guião original do Peixoto é
bom, porque gosto do Peixoto enquanto escritor. Mas para uma série que se
propõe a falar do Portugal de HOJE, aquele era um cenário que nos lembrava o
Portugal de há vinte anos atrás, um Alentejo do final dos anos noventa.
Talvez aqui eu esteja a ser injusto. Talvez
Portugal não tenha mudado assim tanto nestes últimos vinte, trinta, quarenta,
cinquenta anos... e o Peixoto conhece certamente a realidade Alentejana bem
melhor do que eu. Mas não se sente nunca no guião qualquer garra ou ambição de
escrita, a mesma ambição que se sente nos seus livros, crónicas e contos. A
ambição que se espera de um argumento quando trazemos um escritor de renome
para o fazer, o tal inequívoco elevar a fasquia para o nível seguinte. Uma viúva com
SIDA que joga no Totoloto. A sério? Só?
É claro que é difícil encontrar a ambição de um
texto, quando todos os diálogos são entregues com a mesma convicção com que
seriam entregues caso se tratassem de um ensaio para os Malucos do Riso...
Estava aqui a oportunidade de fazer justiça a muitas das nossas actrizes
veteranas, de puxar pelo melhor delas, mostrar que foram e são muito mais do
que os pequenos papéis de avós, porteiras, empregadas, governantas ou mulheres
do dono da tasca, a que a televisão as relegou.
Em vez disso o que é que temos? um conjunto de
actrizes deixadas à sua sorte, obrigadas a fazer maus sotaques alentejanos, a
representarem de forma caricatural sem nunca perceberem realmente qual era o
tom pretendido para "Entre As Mulheres". (e se a finalidade era isto,
não se percebe porque é que para além de um realizador existia um diretor de
actores).
Custa criticar o cinema português. Sei o trabalho
que dá fazê-lo: as dificuldades, os orçamentos apertados, os dias de rodagem
ainda mais apertados. Até sei que na sua maioria, todos os intervenientes são
pessoas justas e honestas que querem dar o seu melhor e que têm bem mais
talento e boa vontade do que conseguem demonstrar e do que a critica faz
transparecer (e depois há aqueles que são simplesmente terriveis, mas isso fica
para outro texto).
Mas é difícil ficar impávido perante a pouca
ambição e o desnorte deste primeiro telefilme:
Uma fotografia sem direção, onde a cada plano
encontrávamos exemplos de iluminação estoirada, planos desfocados, planos mal
iluminados que ocultavam a expressividade dos actores, um total desprezo pela
composição de um quadro e, por fim, planos em que a camera abanava quando os
actores passavam demasiado perto do tripé (a sério que isto acontece!).
Algum do pior som presenciado na 7ª arte lusa,
desde que a célebre máquina de som da Tobis esteve avariada na década de 70 (de
onde nasceu o mito de que o nosso cinema tem mau som). Ecos, ruídos, perches em
campo e desfasamentos. Sejamos justos havia sincronia, mas mesmo quando tudo o
que corre mal, por vezes até o Wolfswinkel marca um golo.
Tudo isto inexplicavelmente sob a batuta de
Henrique Oliveira, que ao longo da sua carreira tem tido o condão de ser inventivo,
competente e uma pedrada no charco do cinzentismo da nossa televisão, ou não
fossem dele os inovadores Claxon e Major Alvega (goste-se ou não) e O Segredo de Miguel Zuzarte, muito
provavelmente a melhor das séries que surgiram na RTP durante a comemoração do
centenário da República. Aqui, o que pauta
o seu trabalho não é inventividade ou eficácia mas antes um total desaparecimento
da função de realizador.
Não se vislumbrou em Entre as Mulheres um golpe de asa, uma ideia original de direção
(ok, há uma tentativa de ter um cantar alentejano a servir de coro grego, mas
que falha a toda a linha), um acertar nas temporizações cómicas ou dramáticas, um momento em que o espectador sinta que o
realizador perdeu mais do que dois minutos a pensar no filme que queria fazer.
Antes pelo contrário, é tudo feito pelo rumo mais
fácil, tão fácil que algumas cenas chegam a atingir um primarismo
constrangedor, em que salta particularmente à memória toda uma sequência dividida em duas cenas, em que uma senhora idosa afirma à porta de sua casa
que ainda irá viver muitos anos e no plano seguinte aparece morta num
caixão. Uma ideia cómica, algo batida mas aceitável, que se perde por completo na
forma como é executada, e onde no lugar de riso, se provoca apenas vergonha
alheia.
Como se concebe então o resultado final Entre As
Mulheres? Falta de tempo? Falta de orçamento? Um mau argumento? Confiança
cega nas novas tecnologias e numa boa pós-produção?
Tudo isso seriam justificações aceitáveis se não
tivéssemos por cá exemplos de bom cinema feito em Português, bem executado
mesmo se feito com poucos ou nenhuns meios e com prazos ridiculamente pequenos
(basta vermos Assim Assim de Sérgio
Graciano), um cinema que se dá ao respeito e que quer superar a adversidade.
Portugal hoje, mesmo em crise, é melhor do que isto.
No seu todo este é um telefilme falhado em toda a linha: como peça de cinema, como veículo cultural, ou mesmo como meio de divulgação da (boa) escrita de Peixoto e de incentivo à leitura de outros jovens autores lusófonos contemporâneos.
Nada que augure algo de bom para os restantes telefilmes que se seguem.
Uma pena, porque a
iniciativa é boa, as expectativas eram elevadas e numa altura em que se discute
a manutenção do serviço publico, esta que devia ser uma das séries de
excelência que ajudaria a explicar a importância do apoio e da execução de Ficção Nacional, acaba por servir como mais um argumento dessa ideia calamitosa que será a privatização
da RTP.
MS
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