fellini, maradona e mais algumas razões para amar a vida
RUDO E CURSI
Realização: Carlos Cuarón
Com: Gael García Bernal, Diego Luna, Guillermo Francella
Cada um de nós assiste a um filme do ponto de vista do seu lugar no mundo, num determinado instante. Isso é inultrapassável. Não há uma leitura objectiva e canónica para uma película. Este tem de ser o primeiro artigo da constituição do tipo que se senta a escrever uma – palavra tão amada como, sei lá, “EMEL” – “crítica” a um filme: escrever de tal modo pessoal que a sua visão se torne universal (Kant apreciaria, se fosse contemporâneo do Cinema).
Quando este cronista-a-partir-de-filmes se senta a ver “Rudo E Cursi”, apega-se àquele pequeno México que conhece, dos pueblos do interior, da gente pobre e sorridente, do espanhol preguiçoso e doce que por ali se fala. O México da música pirosa, mas a cuja genuinidade só resistem cepos sem coração ou sentido de humor. O México louco por futebol, mesmo que el balon insista em não entrar, há muito, para aqueles lados.
Quem não conhece nada disto, poderá não gostar tanto de “Rudo E Cursi”, mas compreenderá os porquês de o escriba ter gostado.
“Rudo E Cursi” é a Selecção Nacional do México. Escrito e realizado por Carlos Cuarón; produzido pela Cha Cha Cha do irmão Alfonso, de Iñarritu e de Guillermo Del Toro; protagonizado por Gael García Bernal e Diego Luna, sete anos depois da sua apresentação à sociedade fílmica, em “Y Tu Mamá También”. Tato e Beto são dois irmãos pobres como todos outros, a trabalhar nas bananeiras e a jogar futebol nos tempos livres, no pelado do povoado. Tato é avançado, solteiro e um lírico apaixonado pela música, não necessariamente por esta ordem. Beto é casado, guarda-redes e um pragmático preocupado com a vida real, não necessariamente por esta ordem. Até ao dia em que Batuta (um belíssimo Guillermo Francella), um empresário de jogadores, descobre os dotes futebolísticos dos irmãos e os leva para a Cidade do México, o D.F. de 22 milhões de habitantes, espaço para tudo o que é belo e horrendo, suave e perigoso, céu e inferno.
“Rudo E Cursi” é um filme de argumentista. Exemplarmente escrito, é conduzido pela voice-over de Batuta, em constantes analogias entre a vida e o futebol, a paixão e a camisola, o amor e a bola. E acompanha as múltiplas ascensões e quedas dos irmãos que ficarão para o futebol como “Rudo”, rude, e “Cursi”, provinciano, simples. Percebemos para onde corre o jogo quanto ao resultado final, mas não nas suas pequenas nuances. Não é líquido que, quando um irmão sobe, o outro caia. Não é líquido que a sorte ao jogo seja o azar ao amor. Não é líquida a origem da felicidade ou da tragédia.
Não é uma extraordinária obra de realização, mas Cuarón protege-se. Pouco futebol se vê para lá das quatro linhas, mas, assim, a mentira passa mais incólume. E, quando chega o corolário do filme – num evidente jogo decisivo entre os irmãos – estão lá, a um só tempo, todos os prazeres e paixões das duas equipas em campo: os amantes do futebol e os amantes do cinema.
É um filme para as massas e já se tornou o quinto mais visto de sempre no México. Quer, obviamente, que o espectador vá para casa de sorriso rasgado. E haverá – oh! Como sabemos que há – quem não perdoe tão capital defeito. Mas “Rudo E Cursi” tem uma moral bem mais amarga e cínica que o cliché que o blockbuster espalhou aos sete ventos – no cinema e, já agora, também na música e na, chamemos-lhe assim por comodidade de linguagem, literatura: que, para um tipo chegar aonde quer, basta acreditar. Não para Rudo e Cursi. Para Rudo e Cursi, um tipo chega aonde consegue. Há casas, estatutos, salários, bens e mulheres que, simplesmente, foram feitas para outro gajo qualquer. Não para nós.
AB
i, 2009.10.11
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