O que vemos quando olhamos para o céu

Zé Manel,

passei a primeira meia-hora deste filme a pensar em ti e no que acharias dele. Confesso que nos primeiros minutos fiquei assustado (e talvez por isso mesmo me tenha socorrido da tua memória): o filme de Aleksandre Koberidze está num ritmo e num plano tão distintos da realidade quotidiana que sofremos um choque sensorial quando somos obrigados a adaptarmo-nos a este novo ecossistema. Pensei que ia ser uma seca. Eis aqui a razão pela qual este filme tem absolutamente de ser visto numa sala de cinema. O tempo desacelera, o ritmo cardíaco com ele. O nosso olhar passa a ter de demorar-se nas paisagens e nas situações. Temos de confrontar-nos com as coisas, com os sentidos que podem ter. Uma e outra vez. Durante os minutos a mais que começamos a perceber que o olhar de Koberidze tem, começamos também a perceber que ou nos adaptamos ou tudo nos vai parecer demais e a mais. E só ao fim de uma meia hora comecei a adaptar-me, como se começasse a conseguir respirar água e tudo fosse agora igual, mas estranhamente diferente. Começamos a perceber que a duração dos gestos e dos estados em "O que vemos quando olhamos para o céu?" estão numa escala diferente. A escala a que tu te costumavas referir como a escala da observação e do confronto. Se as coisas são rápidas demais não temos de nos confrontar com elas. Elas passam antes de nos obrigarem a lidarmos com elas e a encontrarmos para elas um modo de nos relacionarmos. Este é um cinema que te obriga, para o bem e para o mal, sem transigências, a confrontares com a sua realidade, através dele.

Nessa primeira hora senti também a presença de Buñuel em "Esse Obscuro Objeto do Desejo", pela alternância de Carole Bouquet e Ângela Molina como atrizes da mesma personagem, o que é neste filme é feito, de forma menos surrealista, para o casal de protagonistas, pois a alternância é um mero macguffin.

A partir dessa primeira meia hora, convenci-me de que irias adorar este filme, pelo que ele tem também de Oliveiriano. Foi também a partir daí que me entreguei ao filme e me deixei levar pelo seu cinema tão diferente do que estou acostumado. Não sei se foste (só) tu, se foi também o meu fascínio pela Geórgia que me carregou até ao fim da primeira hora e à minha ambientação a "O que vemos quando olhamos para o céu". Cheguei a falar-te do meu interesse pela Geórgia? É um daqueles meus interesses que brota de cem raízes entrelaçadas, dessa minha paixão pelas referências que como magia tocam em partes de mim e onde também estão a Cornualha, Creta, Vancouver, Argentina, Kaliningrado, Goa e por aí fora. No caso da Geórgia acho que é a estranheza daquela língua de uma família rara, a circunstância de partilharmos com eles o vinho de talha e uma Ibéria, e a sua localização entre a Europa e a Ásia, entre outras curiosidades que me atraem. Terá sido isso? Não sei. Alguma influência há de ter tido, mas não tanta que possa aceitar que foi por isso que o filme tanto me impressionou. É certo que a distância que a Geórgia tem do Ocidente (de um Ocidente de que se vem querendo aproximar de há uns anos para cá), distância linguística, étnica, até histórica, permite-lhe um olhar ainda resistente à uniformização do que poderíamos designar uma cultura do Ocidente, que por mais diferenças que (ainda) tenha, tem cada vez mais matizes de semelhança. E acho que esse é o primeiro fascínio do filme, essa genuinidade da diferença: há realmente um olhar diferente sobre a realidade e, por isso, um cinema diferente. E isso é tanto mais explícito quanto o contraste que o filme produz através de outro macguffin: o futebol e um campeonato do mundo que vem a ser vencido... pela Argentina. O futebol assume neste filme o papel de elemento universal que nos liga a todos, além de ligar o casal de protagonistas.

Na última meia hora (de um filme de duas horas e meia), o meu pensamento foi para Malick e como tínhamos ali um olhar semelhante, não apenas sensorial, mas espiritual, ou, talvez melhor neste caso, mágico. Um Tree of Love georgiano.

E de resto, entre essa primeira hora tua e de Buñuel e esta última meia hora de Malick, o que temos afinal nas duas horas e meia de Koberidze, o segundo realizador georgiano com que me encontrei? (o primeiro foi, pela tua mão, Osseliani com o seu "Brigands"). Não temos uma obra-prima porque para isso faltaria uma harmonia que por vezes falta ao filme, mesmo se pode ser explicada (mascarada?) pela sua estranheza, mas temos cinema recordado como obra de arte, no que a arte tem de melhor: implicar um confronto com a nossa humanidade, desde a sua dimensão sensorial até à sua dimensão espiritual. E isso, no mundo de hoje, é precioso.

E por isso mesmo pensei adorarias o filme, Zé Manel.

DM

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