Angelopoulos e a trilogia das fronteiras

"Um italiano, um americano e um suíço entram num país...". Podia ser o início de uma anedota, mas é o mote de uma trilogia. Marcello Maistroianni, Harvey Keitel e Bruno Ganz protagonizam o cinema de Theo Angelopoulos.

No meu top5 afetivo de realizadores, Theo Angelopoulos ocupa um lugar de destaque. Mais do que com as restantes figuras que aí se encontram, Angelopoulos atingiu, e manteve-se nesse espaço, durante anos, apenas graças a dois filmes. Se os anos 90 foram decisivos para a construção do meu gosto cinematográfico (não apenas pela descoberta da Cinemateca, mas pela sorte de algumas das suas estreias) uma boa parte deve-se a neles ter visto "O Olhar de Ulisses" e "A Eternidade e um Dia". Há uns dias concluí essa minha longa viagem pessoal e vi "O Passo Suspenso da Cegonha", o primeiro filme da Triologia das Fronteiras de Angelopoulos e o único que nunca tinha visto. 

É estranho ver a trilogia das fronteiras em tempos de pandemia, de quarentena, de confinamento, de fecho de fronteiras, em que a crise dos refugiados parece ter desaparecido sobre a preeminência da Covid-19. 

Parece que os últimos 20 anos se dobram sobre si mesmos e se tocam, confirmado a circularidade do tempo, invocada por muitos. Hoje a Europa das fronteiras fechadas, internas e externas, com refugiados a quererem nela entrar não é difícil de encontrar na Europa dos anos 90, e sobretudo nas tensas fronteiras da Grécia, com a Turquia, a Bulgária, a Macedónia do Norte, e a Albânia. É sobre esta fronteira que fisicamente surge, quase sempre para ser metáfora, na trilogia de Angelopoulos. E as metáforas ao longo da trilogia são muitas: as fronteiras do tempo (o passado e o presente), as fronteiras da memória. 

E Angelopoulos toma as fronteiras na sua dimensão mais importante: objetos de reflexão. Isto porque as fronteiras da trilogia são fronteiras políticas, que apenas existem como criação humana, e que como tal, para além de servirem como um obstáculo ao movimento físico servem de mote ao pensamento sobre a delimitação humana que realizam. Em tempos de confinamento, em que o espaço físico está igual mas nos impomos confinamento face a um inimigo invisível, em que criamos as nossas próprias fronteiras, a trilogia de Angelopoulos adquire novos matizes. Sobretudo porque a passagem do tempo deu à Grécia e aos Balcãs dos anos 90 um enquadramento histórico que a atualidade das estreais não podia almejar. Agora, com esta nova camada do tempo, e com a contingência da excepcionalidade, a trilogia das fronteiras vê-se como uma nova trilogia. Mas, felizmente continua lá a mestria de Angelopoulos, com os seus planos serenos, mesmo quando cheios de gente e de música e de natureza. 

Três homens à procura de algo, perdidos de algo, a escapar de algo, em que as fronteiras servem para expor fisicamente o cinema de Angelopoulos, ajudado na escrita por Tonino Guerra. E os Balcãs (no que é interessante comparar com Kusturica) são vistos de uma forma angustiada mas sempre poética. Aliás, dois três protagonistas da trilogia, são um escritor e um realizador de cinema. O terceiro é um político tornado refugiado. Todos eles utilizam as fronteiras, mais do que são utilizados por elas. Por isso digo que as fronteiras surgem em Angelopoulos como formas de reflexão, para nós, espectadores, mas também como formas de agir para os protagonistas - o casamento nas margens do rio, o périplo balcânico, a confronto com a fronteira nevada. Mas também as consequências das fronteiras como entes políticos. E esta é a dimensão que hoje mais nos atinge. Não tanto porque os filmes tenham uma mensagem política motivada e clara, mas porque o simples desenrolar das histórias - pelo que elas são, implicam, para onde vão - nos obriga a lidar com as fronteiras. Quer queiramos, quer não. Como agora. Como sempre.
DM



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