Crítica de filmes ainda não vistos: Mother!

Ainda não vi o Mother mas sei o que posso esperar. Aronofsky nunca deixa de me impressionar, mesmo quando não gosto dos filmes dele ou me passam ao lado. Já tendo visto quase toda a sua escassa filmografia de longas-metragens, com a exceção de Black Swan e The Wrestler (já encomendados, já encomendados...) sou o que pode chamar-se um interessado em Aronofsky. Não propriamente fã. O meu olhar sobre a obra de Aronofsky está mais perto do fascínio que o objeto científico estabelece sobre o investigador do que a atração que o artista exerce sobre o sujeito da arte. Não foi sempre assim. E até sei bem quando tudo mudou. 

No princípio, e o princípio foi algures no princípio da década passada, na já desaparecida sala Cine 222, sentei-me para ver Requiem for a Dream. Não sabia ao que ia. Não sabia quem era Jenniffer Connelly, quem era Jared Leto. Não sabia quem era Clint Mansell. Na verdade só sabia quem eram os Kronos Quartet. É verdade que durante uns bons anos achei que o meu fascínio com o filme se devia à banda sonora - brutal, viciante, maravilhosa - mas depois revi o filme algumas vezes e percebi que  tudo estava no ritmo e na alternância entre credulidade e incredulidade, aqui com pretexto das drogas. Foi uma dessas revisões do Requiem for a Dream que me levou a procurar mais daquele Aronofsky. Mas só havia mais uma longa-metragem, Pi. Outra experiência-limite, de contrastes, de obsessão, de loucura, um thriller psicológico if ever there was one no sentido meta-próprio da expressão. Tudo isto é muito apropriado para Aronofsky. Fiquei fã de Aronofsky com Requiem for a Dream e Pi. Tudo isto durou até 2014 e provavelmente descobrirei em breve que poderia ter durado menos.

Em 2007 vi The Fountain, um filme que ainda hoje, volta e meia, revejo em dias muito quentes ou muito frios devidamente acompanhado da bebida indicada. The Fountain é um daqueles filmes que me agrada por ser uma permissão de entrada na loucura íntima de um artista, sem compromissos. Perceber as suas alegorias. Vai acontecendo no cinema cada vez menos (Jarmusch, em tempos, por exemplo). E isso é um privilégio, se alguma daquela loucura encontra contactos com a nossa própria atenção. Mas The Fountain deixou-me um sabor amargo na boca, algo semelhante ao que me viria a deixar a The Tree of Life de Malick em 2012. São filmes que podiam ser uma peça, um degrau numa grande cinematografia mas que sucedidos por experiências amargas tornam-se obras maculadas, como se nelas já estivesse a semente do desencanto com um realizador que até então fora para nós um dos grandes, um dos nossos. Noah teve esse efeito sobre The Fountain. De repente The Fountain não era assim tão bom, já lá estavam os sintomas do estranhamento entre mim e Aronofsky, eu tinha-me iludido e tinham razão os críticps (mas há sempre críticos...) do filme de 2006. Noah é um filme interessante para discutir num seminário sobre judaísmo ou para ter a passar numa parede numa festa temática sobre a origem do vinho, mas não é um grande filme. Noto que sou o mais acérrimo fã de Russell Crowe, e não há epíteto de canastrão que me demova, e noto também que sou especialmente interessado em temas do Antigo Testamento. Podia, pois, estar tudo alinhado, mas faltou obsessão, faltou risco e houve imaginação do Genesis a mais e de Aronofsky a menos. Muito menos do que eu me tinha habituado a gostar e a querer, com no mais recente Malick, mas assim é a vida.

Calculem pois o meu interesse em Mother!, em que do pouco que li, há a esperança num regresso aos temas que contêm melhor a loucura de Aronofsky, do que a vida eterna e o Dilúvio. Espaço para a alegoria mas devidamente alegórica, isto é, ancorada nos gestos e ferramentas do humano, nessa tradução que dá origem à perfeita alegoria. Essa contenção produziu em Pi e Requiem for a Dream ótimo filmes e ainda conseguiu marcar parte de The Fountain, embora já em perda. Talvez Mother! permita regressarmos a isso, a algo que em Aronofsky hoje me parece evidente: os temas cósmicos e existenciais de que tanto gosta só encontram em si terreno para o brilhantismo quando os explora a partir de temas com escalas modestas, humanas, comezinhas.  Por outro lado pode apenas confirmar que ele se perdeu na sua própria visão e essa perda, essa linguagem privada, torna a hipótese de gostar dos seus filmes muito menor, porque as pontes para quebrar essa privacidade da linguagem são completamente erráticas e fruto de acasos. A ver vamos, está quase a estrear. De um modo ou de outro aposto que encontraremos a visão louca de Aronofsky filmada com a mesma dosagem de alternância de ritmos e de estilos que sempre encontramos nele. Só é preciso que uma trama de fundo não o deixe perder-se em linguagens privadas ou cedências ao (re)conhecido.



Adenda: entretanto, saiu este artigo do Guardian sobre o filme, que vai muito bem com o meu texto.

DM

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