Paterson

Talvez porque tenha feito 40 anos este ano, dei por mim há uns meses a fazer a lista dos meus 10 livros preferidos. Por nenhuma ordem especial. Só os 10 livros que são mais preciosos para mim. Aqueles com que conseguiria viver bem se só pudesse ter 10 livros. Um deles é o Sete Cartas a Um Jovem Filósofo, de Agostinho da Silva, um livro que me marcou muitíssimo na adolescência. Talvez a frase que mais me tenha marcado e que cito de cor seja a sentença de Agostinho, a dado passo de que: "quem tem a Obra, a Obra tem-no". Boa parte dessa carta é depois um desenvolvimento desta ideia, a ideia de que se carregamos connosco um mundo, uma Obra, então se ela for verdadeiramente genuína, intensa, pura, ela vai apoderar-se de nós, fundir-se connosco e nós servimo-la a ela e ela a nós, em perfeita sinergia. E, talvez mais importante e interessante, ela vai sobrepor-se a tudo o resto a que normalmente chamamos vida. Daí que a chave de Paterson [SPOILER] seja para mim a conversa com Masatoshi Nagase, o poeta de Osaka, que Paterson encontra no final do filme, junto à queda de água.

Depois de acompanharmos uma semana da vida de Paterson, a sua rotina, o seu trabalho como motorista da Carris de New Jersey, a sua relação com a fascinante Laura, as suas paragens no bar local, as suas pequenas singularidades (o interesse por Petrarca), e de percebermos o papel que a poesia desempenha na sua vida e o aparente desfecho trágico que ela tem, a conversa entre Paterson e o poeta japonês e, sobretudo, a oferta do caderno em branco deste último ao primeiro, são o momento "Quem tem a Obra, a Obra tem-no" de Jarmush, que aliás, casa bem com uma certa fatalidade que perpassa por todos os seus filmes e que casa bem com o onirismo de que ele tanto gosta.

Para além de esteticamente irrepreensível, a fazer lembrar Stranger than Paradise ou Coffee and Cigarretes, Paterson acrescenta à obra de Jarmusch um desafio à tranquilidade, como se dependesse de nós, espectadores, saber se o que está perante nós é uma tensão irresolúvel e que em crescendo se tornará insuportável - no que é ajudado pela cadência diária das pequenas repetições do quotidiano - ou se, pelo contrário, a chave de Paterson é o que demonstra que toda a tensão que poderia existir foi superada pela aceitação de que Paterson tem a Obra e portanto a Obra tem Paterson. 

Parece-me (ou quer-me parecer) que é isto. E está tudo bem. Um Jarmusch delicioso. Sobre como a descoberta do nosso tom nos pode (re)conciliar com os aspetos práticos da vivência relacional e da sobrevivência diária.

DM


PS - Paterson é na verdade o poeta americano Ron Padgett, de que pouco conheço (na verdade, apenas Alone e Not Alone) e este filme é também uma boa razão para o (re)descobrir, bem como a William Carlos William.

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