As sinapses do Silêncio OU um texto sobre um filme que devia ter sido
O Professor Horácio Peixoto de Araújo, um homem extraordinário, devotou boa parte da sua vida ao estudo da pioneira (e portuguesa) presença jesuíta na China. Além de ter elaborada a sua tese de doutoramento sobre este tema, com o título "Os Jesuítas no Império da China - O Primeiro Século (1582-1680)", elaborou a sua tese de mestrado sobre a obra fundamental de um dos primeiros jesuítas e pisar o Império do Meio, "Asia Extrema" do Padre Antonio de Gouvea.
Foi graças à sua amizade que pude descobrir e que me interessei pelo tema fascinante da presença portuguesa na China e no manancial de informação que permitiu fazer chegar à Europa. Mais de vinte anos depois, numa fortuita conversa de circunstância com um antigo professor meu da Faculdade de Direito, surgindo em conversa em tema, foi-me recomendada uma biografia de um outro dos pioneiros jesuítas, o Padre João Rodrigues. A obra de Michael Cooper intitula-se "Rodrigues, o intérprete" e a evocação serviu de desculpa não apenas para adquirir a obra, mas para ir confirmar se não estaria referida na monumental tese de doutoramento de Horário Aráujo. E lá estava, efetivamente, logo a páginas 11. Havia ali uma harmonia e uma sensação de poder continuar, por outros meios, a partilhar da obra e do interesse da presença portuguesa na China, que o Professor Horácio Araújo me havia transmitido.
Vem tudo isto a propósito do novo filme de Martin Scorsese. Pode um cinéfilo censurar um realizador por ter feito um filme ligeiramente ao lado do que devia ter feito? Tem um admirador o direito de exigir de um cineasta que se dedique aos temas que mais lhe agradam? Devia ter. Devia haver um Scorsese na calha para cada fã verdadeiramente merecedor. A questão torna-se verdadeiramente dolorosa quando o Scorsese em questão estava lá quase, quase. Close, but no cigar.
Scorsese tem um novo filme, Silence. Só o título já é atrativo bastante para mim. Fui investigar. E a recensão do Guardian deixou-me de rastos. Trata-se da adaptação do romance homónimo de Shūsaku Endō, que curiosamente, como recorda o jornal inglês, teve uma das suas duas anteriores adaptações ao cinema por João Mário Grilo, num filme intitulado Os Olhos da China, que não me lembro de ter visto, mas cujo postal consta da minha coleção (bons tempos, esses, dos postais da Medeia, para quem é coleccionador e cinéfilo).
E sobre que é o Silêncio do católico e japonês Shūsaku Endō? Bem, leiam a recensão, mas sumariamente e simplificando sobre a renúncia forçada da fé no espaço público e o modo como podemos ainda assim manter a fé dentro de nós. Mas também sobre o modo como lidamos com o silêncio de deus em face do sofrimento que nos fazem passar em seu nome. Não são temas de que desgoste. Bem, pelo contrário (e já lá voltaremos). Mas é exatamente por gostar tanto deles que pensei como era melhor deixarmos o cristianismo e o budismo, o Japão e a Europa e termos Scorsese a adaptar a Asia Extrema de Antonio de Gouvea, na edição de Horácio Peixoto de Araújo. A leitura da obra, que sendo uma relato histórico e não um romance, restringe o seu universo de potenciais leitores, demonstra, contudo, que daria um magnífico filme, não só com um enredo dramático, dadas todas as provações que Antonio Gouvea passou nos mais de 30 anos que viveu na China do século XVII. Além do interesse comercial da obra, tendo em conta a importância atual da China e o interesse que desperta (o Japão que me perdoe).
À medida que fui lendo a recensão do Guardian ia pensando, Martin, Martin, tu é que podias ter pegado na Asia Extrema, tinha lá o Gouvea, o Rodrigues, imperadores chineses de origem tártara, presidentes alemães de observatórios astronómicos chineses e outros deslumbres que o cinema exponenciais.
Dito isto, vou ver o filme, claro. Um Scorsese é um Scorsese e quero ver como trata ele o tema da renúncia pública da fé, sob coação. Algo que pode ser um exercício na história dos esoterismos, mas que é uma heresia nos exoterismos ortodoxos devido ao efeito de contágio que pode ter sobre atuais e potenciais crentes. Mas vou, na esperança de conseguir imaginar, ao mesmo tempo, a Asia Extrema de Scorsese. Dos nossos realizadores preferidos podemos pedir sempre um pouco mais de ilusão, senão para que servem?
DM
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