Variações de um mesmo tema: Ama-me esta Noite… Menina da rádio:




Duas sequências cinematográficas distintas, separadas por um oceano e por uma década, mas baseadas no mesmo tema: A música enquanto ponto de união, um exemplo de linguagem universal dentro de uma arte já de si universal que é o cinema.

A sequência musical “Isn’t it romantic” de Ama-me esta Noite (1932) e a sequência final de A Menina da Rádio (1944), variações do mesmo tema que nos mostram que o cinema Português, em especial na sua época dourada da comédia, conseguia ser menos isolado do que o País Ditatorial em que vivia e que os seus autores tinham uma consciência cinéfila e um conhecimento cinematográfico maior do que normalmente damos crédito.

Poster de Ama-me esta Noite (1932)

À distância dos seus mais de 100 anos, tornou-se habitual vermos a História do Cinema como uma sucessão de obras primas, pautada pelos habituais 100 ou 200 filmes de referencia a que se alia um numero substantivamente inferior de "realizadores-chave". É por isso fácil deixarmos passar obras ou realizadores que à época foram sucessos ou marcos incontornáveis do cinema. Tal é o exemplo de Ama-me Esta Noite, realizado por Rouben Mamoulian.

Mesmo que o seu nome não seja hoje tão idolatrado como Hawks, Ford ou Hitchcock, Mamoulian foi um dos mais inventivos realizadores da Era Dourada de Hollywood, fã incondicional do Expressionismo Alemão, pioneiro em efeitos especiais, o autor da primeira longa-metragem em technicolour e uma figura fundamental para libertar a camera e a realização da prisão que se tornou a entrada do Cinema no sonoro.

Rouben Mamoulian (1897 - 1987)

Foi ele quem criou os primeiros dispositivos insonorizados para as cameras de filmar e ao contrário dos seus contemporâneos, não se incomodava que os sons da grua ou do charriot se intrometessem na banda sonora final do filme. Para ele, o efeito visual da cena, a liberdade da camera eram mais importantes do que detalhes no som, ou nas suas palavras “Se a cena falar com o espectador, ele vai estar demasiado embrenhado nela para se incomodar com um pequeno ruído sonoro”.

Ama-me Esta Noite é um exemplo do seu virtuosismo enquanto realizador, a obra feita apenas cinco anos após a instauração do som no cinema, demonstra um total conhecimento sobre a utilização deste novo meio. O som enquanto um complemento narrativo, tal como Fritz Lang o sugerira em Matou (1931).  No filme, a sequência musical de “Isn’t It Romantic” é talvez a melhor execução desta ideia. Uma espécie de longo plano de sequência, sem realmente o ser mas que nos transmite uma sensação sonora de continuidade e nos abre a porta para o cinema moderno. (Se nos alhearmos do género de Comédia Musical, é fácil revermos Tarantino, Anderson ou Scorcese nesta sequência).

Mamoulian, de batuta, dirige Ama-me esta Noite (1933)

Ama-me Esta Noite atingiu sucesso à época e estreou, com boas criticas, em Portugal sete meses antes de A Canção de Lisboa (1933), o filme pioneiro que iniciaria a chamada era de Ouro da Comédia Portuguesa.

Dessa época do cinema Português, fica-nos essencialmente Vasco Santana, António Silva, Ribeirinho, Milú e um forte sentimento de nostalgia por um género que foi desde o seu inicio bem recebido pelo publico, mas mal visto e criticado pelos seus pares. Desde as palavras de António Ferro, diretor do Secretariado Nacional de Propaganda, que a considerava com o “Grande Cancro do Cinema Português”, à ideia algo consensual (e totalmente errada) que persiste desde os surgimento da geração do Novo Cinema Português, que estes são filmes executados de forma artesanal e tosca, por um bando algo boçal de pioneiros com pouca ou nenhuma instrução cinematográfica e cinéfila.

Poster de A Menina da Rádio: 10 canções, 9 Vedetas

Tal ideia não podia estar mais afastada do que era a realidade da época e A Menina da Rádio é um bom filme para desfazer essa preconceito. Realizado por Arthur Duarte, muito provavelmente o mais influente realizador desta geração, Duarte enquanto cineasta que fez a parte da sua formação nos estúdios alemães da UFA e por altura de A Menina da Rádio assinava a sua segunda longa-metragem após ter realizado um ano antes O Costa do Castelo (1943).

Tal como Ama-me Esta Noite,  também A Menina da Rádio segue um modelo de cinema escapista, como se pedia ao cinema romântico da altura, com jovens e elegantes protagonistas onde a trama quase sempre gira à volta de um protagonista inocente e de origens humildes, que contra todas as contrariedades conquista o seu sonho, muitas vezes sob a figura de um príncipe/princesa encantado (Este seria aliás o modelo de quase toda a cinematografia de Arthur Duarte, apenas mudando Maria Eugénia pela sua verdadeira musa, Milú). Acresce a inclusão do elemento cómico, quase sempre uma figura veterana, e é aqui que o cinema Português se demarca das restantes cinematografias da sua época, através da figura de António Silva (e Vasco Santana) e o registo muito particular do teatro de revista Português. António Silva cumpria a figura do bom malandro, um zé povinho polido, que contornava a lei com "chico-espertice" um pouco à imagem do vagabundo de Chaplin, só que o seu talento não era o mudo do burlesco, mas antes o poder da palavra.

Maria Eugénia e Óscar de Lemos em A Menina da Rádio (1944)

As ligações ao modelo e às convenções das Comédias Musicais Americanas completam-se com a tentativa de criar um Star System Português e a utilização de uma musicas de referencia, temas que como era quase lei , se tornariam em clássicos instantâneos, que passariam na rádio e nos teatros do parque Mayer. Tal com diz o seu poster, A Menina da Rádio é um filme com 10 Canções e 9 Vedetas!

Há obviamente uma década que separa os dois filmes (Na altura era só uma década que nos separava…) e uma aparente maior inocência na execução do filme Português, mas nas comparações não podemos descurar o que era uma cinematografia supervisionada pela censura de um regime como o Português e a diferença orçamental que já à época se sentia. Mas em ambas as obras existe a mesma vontade: A de comunicar eficazmente com o publico através de um género e um modelo narrativo. 

Arthur Duarte (1895 - 1982)


A camera de Arthur Duarte pode não ser tão livre como a de Mamoulian, nem a sua  planificação tão arrojada, mas a forma como o realizador insere a citação do filme do norte-americano no seu filme é particularmente eficaz, e abrilhanta em muito o final de A Menina da Rádio. A sequência pode ser vista no filme a partir do 1h 33m 45m

Um exemplo puro e profissional de cinéfila, num Cinema Português que de artesanal e tosco, tinha muito pouco.

MS

Ama-me esta Noite : Isn't it Romantic



A Menina da Rádio

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