Porque é Que o Mundo (ainda) Precisa de um Super-Homem: Ou o momento em que Zack Snyder nos mostra quem realmente é o seu Herói





Em 1998, depois de toda uma (longa) mini-série de BD dedicada aos primeiros anos da vida de Batman/Bruce Wayne  intitulada The Long Halloween,  Jeph Loeb e Tim Sale iniciaram um trabalho de revisitação sobre o outro principal personagem da DC Comics: Super-Homem

Se para escreverem os primeiros passos de Batman a dupla utilizou com base a obra de Frank Miller Batman: Ano Um (1987), escrita quase uma década antes  e obra pela qual todas as histórias de origem se passaram a reger, para Super-Homem o ponto de partida foi o igualmente outra obra seminal de origem de super-herois, neste caso Man of Steel (1986) de John Byrne.


The Long Hallowen tinha como pano de fundo os feriados tradicionais, uma temática recorrente na mitologia do cavaleiro das trevas, afinal, que melhor forma de tentar compreender psicologicamente o vigilante em perpétua cruzada para vingar a morte dos pais, do que o observarmos nos momentos em que sente maior solidão: Os feriados dedicados à família?

Para os primeiros anos de Super-Homem/Clark Kent,  Loeb e Sale procuraram igualmente um tema dominante que ligasse a mini-série. Criado numa quinta no Kansas e filho adoptado de agricultores, a escolha acabou por recorrer num elemento fundamental à vida de campo: as estações do ano.


Assim nasceu Superman For All Seasons, nome dado numa clara alusão à peça de Robert Bolt A Man For All Season  (superiormente adaptada ao cinema por Fred Zinnemman em 1966) sobre o humanista Thomas Moore, que na peça é retratado como o mais justo dos homens, alguém de inquestionável sentido de justiça e moral,  um... Super-Homem.

O nome da obra assenta num jogo de significados, Seasons  pode ser interpretado da forma mais literal, a passagem do tempo através das suas estações, mas igualmente de uma forma mais vasta,  a de um (super) homem para todas as épocas, um homem para a eternidade, tal como na justa tradução do titulo do filme de Zinnemman para português.

Não há inocência na escolha do titulo por Loeb que compreendeu que, dos personagens criados na era clássica da banda desenhada que sobreviveram até aos nossos dias, foram os heróis mais justos e com uma maior interpretação do mundo como sendo preto  e branco que se adaptaram pior aos tempos modernos. Se Batman (o lado negro para a luz de Super-Homem) se adaptou como uma luva aos tempos cínicos do pós-modernismo e anos seguintes, onde é que existe na era corrente, espaço para um bom rapaz, omnipotente e sem espaço para erro como o Super-homem? Esse tem sido o dilema em que vive o personagem e os seus autores nas últimas duas décadas:  Quem é, e o que representa hoje o Super-homem? E como o tornar relevante sem ser apenas uma anedótica e invencível bandeira da moral e bons costumes?


Quando Bryan Singer com o o seu SUPERMAN: O Regresso (2006) optou por realizar uma sequela direta da obra de Donner, ignorou estas questões e, para lá assinar um terrível filme de ação, deixou-nos com isso com um personagem alheado do mundo que o rodeia, um Super-homem autista, unidimensional, que não muda nem se adapta, que não pertence a tempo nenhum. Um herói que nos dizem que que devemos idolatrar, simplesmente porque está no ecrã com uma capa e um S (porque sim, É um S) ao peito. E também por isso o filme falhou nas bilheteiras.

Serve isto para saltarmos para Homem de Aço (2013) de Zack Sneyder  e para o momento no qual ele nos apresenta a relevância deste seu Super-Homem. o momento em consegue tornar o seu blockbuster em algo simultaneamente intemporal e num inegável produto desta geração. Um momento que é acompanhado musicalmente (de uma forma nada inocente, diga-se de passagem) por Seasons de Chris Cornell.


Snyder tinha uns quantos pesos nos seus ombros quando optou por fazer Super-Homem: O já mencionado fracasso de Singer,  Os incontornáveis filmes de Donner/Christopher Reeves e a fasquia elevada da trilogia de Batman assinada por Nolan. (Não há hoje Super-Homem sem comparações a Batman). De forma inteligente acabou por ir buscar influência ao trabalho de Loeb (tal como a DC/Warner já antes fizera para a série Smallville) , claramente um dos homens que na última década melhor teorizou e escreveu sobre as mitologias Batman/Super-homem.  (E seria injusto não mencionar também as séries de BD Superman: Birthright (2003-2004) e Superman:Secret Origin (2009), as duas ultimas origens oficiais do super-herói, e os seus escritores Mark Waid e Geoff Johns respectivamente. Material a que O Homem de Aço foi assumidamente beber).

Quanto ao filme de 2013, a questão de Singer/Donner ficou  resolvida por Snyder, ao afastar-se da obra de 1978 não fazendo uma sequela, optando por um recontar da origem sem fugir à mitologia já pré-estabelecida do personagem. Aliás, pode-se afirmar que há mais do filme de Donner na obra de Snyder do que na continuação direta de Singer. 

Isto porque o Super-Homem de Homem de Aço é um produto inegável dos seus tempos, tal como o foi quando desempenhado por Christopher Reeves, que à data da sua estreia em 1978  surgiu num momento muito particular do cinema, o da  viragem da geração de 70. O momento em que um cinema maduro, cerebral e de protesto começava a dar lugar a uma era dourada de cinema fantástico. Esta era obra que aliava a magia e sentido de aventura de Guerra das Estrelas (1977) com a nobreza dos valores do herói clássico americano recuperado em Rocky (1976). 


O filme de Donner trazia o Super-Homem que o final da década de 70 necessitava, um herói sem duvidas, que distingue facilmente o Bem do Mal, que surge sempre no momento certo para fazer o que é correto. O grande equilibrador moral de uma nação partida por anos de Vietnam e escândalos políticos. É um falso Super-homem intemporal no sentido em que, sendo a sua mensagem de justiça For All Seasons, espelha  de uma forma muito especifica os desejos e as esperanças de regresso à inocência de toda uma geração. (E por isso mesmo Reeves não sobreviveu aos heróis de acção dos anos 80).

Mas voltemos ao filme de Snyder e à apresentação do seu herói.  E para isso temos também que voltar a mencionar a mais seminal apresentação de um herói da história do cinema (prometo que tentarei não falar desta cena, mais do que um par de vezes por ano!): A de Ringo Kid (John Wayne) em Cavalgada Heróica (1939) que marcou para sempre a ideia do que é um herói na grande tela. O célebre travelling de Ford diz-nos tudo o que temos que saber sobre o seu personagem: Estamos perante alguém que é maior do que a vida, imponente, confiante e destemido, o espirito da fronteira.  E caso houvesse duvidas, só pela leveza como maneja a sua Winchester, o melhor pistoleiro do Oeste.


Em Homem de Aço  o primeiro momento heróico de Clark surge na plataforma petrolífera, quando abandona o anonimato em que tem vivido para saltar sem medos para o meio das chamas, suportar o peso das vigas de ferro para salvar os trabalhadores. É um momento heróico, mas (e principalmente para uma geração cínica que conhece de trás para a frente a mitologia do último filho de Krypton) não define inteiramente o personagem, não nos diz quem é este homem. É empolgante, torcemos por ele, mas é o que esperamos ver de um Super-Homem. Aceitemos que é uma apresentação de heroísmo na escola de A Cavalgada Heróica, mas no espectador a pergunta mantêm-se: Quem é este homem?

É um dilema que não está tão latente na trilogia de Batman de Christopher Nolan. Desde cedo  (logo no primeiro filme, mas pautado por toda a trilogia) que percebemos quem é esta versão de Bruce Wayne e o que o move:  Há o lado  da procura de justiça pela morte dos seus pais, mas principalmente temos o homem roubado de infância  que nunca chega a atingir a idade adulta, criando todo um sonho infantil de vigilantismo para nunca o ter que o fazer. 

Batman de Nolan é um Peter Pan que se recusa a crescer e enfrentar as responsabilidades, a forma como opta por uma vida de combate ao crime, tem o mesmo impulso e irresponsabilidade juvenil com que pondera constantemente abandonar o manto de morcego ao primeiro sinal de contrariedade (e também por isso o segundo filme é o mais conseguido: É aquele em que temos um Batman maduro e sem duvidas durante um maior período de tempo).  O Super-homem de Snyder  é nos apresentado como um oposto do Cavaleiro das Trevas. É o homem que vive com o peso do dom que lhe foi concedido, que percebe que terá de embarcar numa jornada messiânica e que por fim aceita a inevitabilidade do seu destino, com todas as responsabilidades e arrependimentos que terá de arcar por ter nascido com os poderes que tem. 


E assim voltamos a Seasons de Chris Cornell,  quando Clark vai dar às praias cinzentas e rochosas de Nantucket, após a explosão na plataforma petrolífera.  Sem roupas, sob a chuva e incrivelmente só... mas renascido. Caminha ao som de uma música grunge dos anos 90, tenta passar despercebido e, no meio de uma enorme nostalgia, finalmente percebemos quem é este homem: O filho pródigo da geração Y. 


Ele está no coração da crise Americana (e mundial), faz parte dessa geração pós-X, a que cresceu no final dos anos 80 e inícios de 90, que não participou activamente no movimento Grunge, nem no boom económico, nem na queda do muro, nem na suposta estabilidade da era Clinton, mas assistiu a tudo isto com uma promessa de utopia que ficaria por cumprir. (É, de certa forma, a mesma geração a quem é endereçado o memorável discurso que Rocky faz ao seu filho em Rocky Balboa (2006)).


Uma geração incapaz de pôr em prática o seu potencial por estar estrangulada entre as certezas e os erros das gerações que a antecede e o self entitlement cinico da geração que a precede. Esse grupo de homens e mulheres entre os 35 e 25 anos, de parca esperança e trabalhos de pouco rendimento (a nossa geração Mil Euros), condenados a uma espécie de hibernação, uma adolescência perpétua, angustiante e apática, mas presa a algo de confortável e a uma culpabilização que a espaços liberta doses moderadas de raiva e vontade de justiça (em parte, o Batman de Nolan).





É este o nosso herói. É esta a geração a que ele pertence e é ele que, de uma forma  assumidamente messiânica por parte de Snyder , irá guiá-la para libertação. Que a fará pegar nas rédeas do seu destino e alcançar o inalcançável.  Ou nas palavras do seu pai Jor El: " (...) In time, you will help them accomplish wonders!".  

Mas para isso ele tem primeiro que querer fazê-lo. Tem que assumir o peso da sua responsabilidade, tem que saber decidir por si, perceber que há um equilíbrio entre os ensinamentos das suas duas figuras paternas e que é em saber filtrar e escolher o melhor da mensagem de ambos que perdurará a sua fibra e o seu futuro.

Para ser aquilo a que se predispõe, ele tem que fazer uma escolha. Tem que perceber que, tal como o seu pai Jonathan Kent disse, optar por uma boa decisão ou por uma má decisão é melhor do que viver no estado de não decisão em que se encontra. Ele tem que decidir tornar-se adulto.

E é este o momento em que o herói se torna adulto.

E é este o momento em que o espectador sabe quem É este Homem, este Super-Homem.

Pode não ser John Wayne com a sua Winchester na planície do Oeste Americano, pode não ser um momento que perdure para sempre na história do cinema. Mas caraças se um Clark Kent a caminhar  ao som de Chris Cornell não dá uma cena e tanto!


MS


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