Detachment (i) - O "eu penso" OU Um texto cinéfilo-político

(um texto que tem Kant, Wittgenstein, Isabel Jonet e Adrien Brody)



De um ponto de vista moral (sem moralismos, atenção), o melhor de Detachment é a sua incursão pelo problema da consciência de si, começando pela própria formação da consciência e o modo como a formamos.

Adrien Brody surge aqui como uma figura excessiva, destinada a demonstrar-nos, pelo extremo, a consciência de si, face ao outro extremo, o perigo da inconsciência de si, dos jovens adolescentes a quem ensina literatura inglesa. 

Tenho escrito muito nos últimos tempos, infelizmente, sobre os efeitos da crise e das políticas públicas a ela associadas, sobre a importância da ideologia, ou talvez melhor, sobre a recuperação do pensamento ideológico para uma geração que, aparentemente, poderia passar sem ela. 

Em Detachment, como em tantos outros filmes, obras literárias, ou vidas anónimas, a literatura é o móbil para a criação de uma consciência de si (e faz loas à importância da educação como direito universal, fundador da igualdade de partida do Estado social e solidário). Mas pode ser a literatura como pode ser a filosofia ou qualquer outro acto de cultura. O que parece inevitável é que, em qualquer altura em que tenhamos que reflectir sobre aspectos essenciais das nossas vidas - a comida, a roupa, a higiene diária - esta reflexão só pode ser feita a partir de um lugar, de um lugar que praticamente todos os filósofos, com as mais variadas designações, visitam: tendo que optar vou aqui chamar-lhe o "eu penso". 

Numa altura em que somos chamados - e essa é a primeira consciência de que desesperadamente precisamos - a pensar e a intervir sobre o nosso país, a nossa sociedade, a nossa comunidade, tanto podemos fazê-lo como autómatos, deixando que pensem por nós, como podemos aproveitar a oportunidade para reforçar a nossa consciência de nós e do mundo e fortalecer o nosso "eu penso". Este lugar, que é simultaneamente identidade e capacidade de ser fraterno, é o lugar por onde deambula Adrien Brody em Detachment, empenhado em conseguir que os seus alunos criem uma consciência própria e reflictam sobre o mundo (o primeiro exemplo magnífico dado no filme é a imagem contemporânea das mulheres). A ausência desta reflexão é, não apenas uma captura pelas elites (às quais renunciamos também a pertencer), mas, pior, um rapto consentido e aceite, temperado com síndrome de Estocolmo.

Há algumas semanas, quando Isabel Jonet, na SICN, defendeu que tinhamos todos que empobrecer e que não havia miséria em Portugal, o que mais me impressionou não foram as posições da Presidente do Banco Alimentar contra a Fome, mas o facto de muita gente bem pensante ter defendido que havia sobretudo um problema de expressão em Jonet e que ela defendia algo de elementar e incontroverso. Estas posições impressionam-me porque, como a entrevista de Isabel Jonet, hoje ao jornal i, demonstram, estavam profundamente erradas e ainda bem: o que a Presidente do Banco Alimentar contra a Fome disse foi o que pensa e o que pensa reflectidamente. E não há nada de errado nisso, numa comunidade plural. Pelo contrário, é importante que pessoas livres saibam o que pensam os seus concidadãos sobre aspectos elementares da vida em sociedade para poderem associar-se ou criticar conforme as suas próprias consciências e não por clubismos, simpatias, filiações familiares, ou qualquer outra razão que nada tenha que ver com a substância do debate em curso. Afirmar-se que se prefere a caridade à solidariedade social, como explicou Isabel Jonet, é uma afirmação que dá trabalho a compreender, dá trabalho a criticar (positiva ou negativamente), e que, como diria Adrien Brody, aliás Henry Barthes (e ninguém me tira da cabeça que há aqui uma homenagem a Roland) implica que tenhamos consciência de nós, para depois podermos pensar nas coisas. Mesmo que a realidade, o nosso estilo de vida (lebensform) seja algo construído comunitariamente, é fundamental que cada um dê o seu contributo por reflexão e não por arrasto.

Daí que tenhamos de desconfiar, de desconfiar muito, de quem nos apresenta afirmações como mal expressas, mas, no fundo incontroversas, sobretudo quando dizem respeito a algo tão elementar como o modo de uma comunidade decidir combater a pobreza, a exclusão social, a impossibilidade de aproveitar as capacidades física e intelectuais de todos os seus membros. Devemos desconfiar porque mesmo as coisas incontroversas implicam que reflictamos por nós sobre essa sua qualidade, decidamos por nós. Eu, por exemplo, não prefiro a caridade à solidariedade social. E tenho as minhas razões. Pelo contrário, do que conheço de Poe, direi que The Fall of the House of Usher é talvez a sua mais completa obra. Mas é uma reflexão inacabada. 

Precisamos de pensamento ideológico, precisamos de saber quem somos, de discutir, de concordar e de discordar, uma e outra vez, e novamente. Precisamos de pensar(-nos) para agir. 

Este repto à criação de um "eu penso"é o melhor de Detachment, e a sua erosão é também o que está em perigo cada vez que se pensa em atacar a escola pública. E é o que cada vez vejo faltar mais em Portugal.

DM

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