Emmanuelle de Kristel



Mal o escrevo parece-me estranho: Emmanuelle, de 1974, é um dos filmes da minha adolescência. Mas depois penso que não. Afinal todas as adolescências partilham aspectos comuns, a descoberta do erotismo é um clássico intemporal.

O meu pai tem o vinyl da banda sonora e lembro-me de ouvi-la em miúdo. Tanto o tema como a capa do disco me fascinavam. Sobretudo, claro, Sylvia Kristel no enorme fateuil.

Vi o filme, mais tarde, quando uma noite passou na RTP (na 2, provavelmente) e não querendo tornar este post uma estafada discussão sobre a distinção entre erotismo e pornografia, direi apenas que o sentido último do erotismo, como nota Bataille, é a morte. Apropriado, pois, que escreva, na morte de Sylvia Kristel, sobre Emmanuelle, que é para mim a sua única encarnação.

Diz-se que (enfim, deve haver estudos) Emmanuelle teve um surpreendente sucesso entre o público feminino. Não é difícil de compreender: Emmanuelle, como lhe diz a certa altura o marido, não é a beleza dele, mas A beleza. Contextualizando isto na época, na paisagem e nas narrativas dos meados dos anos 70, chega-se a uma espécie de feminismo fantasioso, que parece perdurar (pense-se em Fifty Shades of Grey e o sucesso que está a ter entre as mães de todo o mundo).

Se é certo que este elemento pode trazer alguma densidade ao filme e explicar parte do sucesso e importância que ganhou ao longo do anos, a verdade é que Emmanuelle tem ainda um outro aspecto interessante: é um filme meta-erótico. Preocupa-se, nos seus interstícios, com a própria noção de erotismo. Não é, pois, apenas, o coming of age (no pun intended) de uma jovem mulher de diplomata, mas uma reflexão sobre o próprio modo com o sexo pode ser transformador do remanescente das nossas vidas, e não algo que está num quarto fechado das nossas existências. Regressemos a Bataille, "há flagrantes semelhanças, há até equivalências e permutas, entre os sistemas de efusão erótica e mística. Mas essas relações não podem  surgir com clareza senão a partir do conhecimento experimental das duas espécies de emoção". A este propósito noto que no Doc Lisboa irá passar um interessante filme sobre S. João da Cruz, a partir da obra de Llansol (aposto que não achavam possível ter no mesmo texto Emmanuelle e Llansol).

Há na Tailândia de Emmanuelle e nas suas experiências sexuais um percurso de descoberta que pode ser lido à maneira de muitos outros percursos de descoberta, entre o real e o onírico, e que permite uma linha de leitura do filme que se filia numa tradição de caminhos não procurados e de destinos não planeados. O que traz um interesse acrescido a Emmanuelle é o encanto de Kristel e o arco de convulsão da sua personagem. Escusado será dizer que nunca deveria ter havido um Emmanuelle 2.

DM


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