Drive: uma ópera-prima (viii) - Os carros

Há essencialmente 4 carros importantes em Drive, 3+1, se quisermos ser mesmo geeks. 

1. Chevrolet Impala

2. Chevrolet Chevelle

3. Ford Mustang GT

4. Chrysler 300

O primeiro serve para a sequência de abertura e é imediatamente apresentado como o carro mais vendido no Estado da California. É ubíquo, é discreto. É mesmo o que vem a calhar para alguém que à noite é um talentoso condutor de fugas. É o único dos carros sem história de Drive, sem ser a própria história que o filme lhe empresta, uma sequência inicial que prova um ponto simples: para um grande condutor até o carro mais banal é uma ferramenta de precisão. Estamos apresentados, o Impala sai de cena, para nunca mais regressar.

Com o Chevrolet Chevelle estamos noutro domínio, aliás, no domínio oposto. A mesma marca, uma história completamente diferente. Se o Impala é o carro incaracterístico, o Chevelle tornou-se um clássico despretensioso. O carro ideal para o condutor de Drive. Um carro de uma outra América mas, que tal como o filme de Refn, foi entretanto modificado e actualizado. Só na aparência sobrevive como um Chevelle de '73. Mas é essa aparência que enche o ecrã, com as múltiplas passagens por LA, a cruzar ruas e avenidas.

O terceiro e quarto carros têm que apresentar-se em parelha. Eles protagonizam umas das melhores cenas de Drive, com o condutor ao volante de um Ford Mustang GT (suspiro) a ser perseguido por um Chrysler 300. Ambos têm a sua história. Se me parece que o Ford Mustang GT é o carro que o condutor teria se tivesse mais dinheiro e menos preocupações com ser discreto, o carro desportivo que a América prefere, como diz a Ford e um piscar de olhos a Steve McQueen, que imortalizou o Shelby GT500. É o carro bom.

O Chrysler 300 é o carro mau. E isto merece alguma contextualização. Em Drive, ao contrário do product placement dos grande blockbusters norte-americanos, que contam com vários Audis e BMW (Bond e Homem de Ferro, come to mind), só há carros dos Detroit Big Three: Ford, Chrysler e GM. Com o Chrysler 300 eles estão todos reunidos. Mas se isto é verdade - e sendo preciso um carro mau, como era para a cena de perseguição - nada podia ser melhor que um Chrysler 300, o mais europeu e, sobretudo, germânico, dos carros americanos. Feito para apelar aos gostos daqueles que gostam de Audi A6 ou BMW Série 5, foi a resposta americana à invasão teutónica na gama alta. Há aliás um filme que demonstra bem isso, Mr. and Mrs Smith de 2005, colocando lado a lado um Cadillac e um Mercedes, respectivamente os carros de Mr. and Mrs. Smith.

Os carros têm um papel importante em Drive (mesmo que, incrivelmente, Luís Miguel Oliveira não o tenha percebido, passando-lhe, aliás, todo o filme ao lado). Esse papel, como todo o filme, está cenicamente subordinado ao tema de Refn, à ópera que Drive é. Os carros, como as personagens, como a música, como Los Angeles, são o modo actual de Refn actualizar uma questão intemporal que fomos aqui abordando ao longo de vários posts: o heroísmo é uma actividade não necessariamente uma qualidade. Do mesmo modo que a existência é uma actividade - como todas as suas raízes, cortes e nervuras - e não tanto uma qualidade. Essa é uma leitura bem possível para a ópera de Refn e para o seu condutor. É, pelo menos, a minha preferida.

DM