Carta para Paris




Zé Manel,

dois dias passados e continuo sem ter a certeza se terias gostado de Meia-noite em Paris, o novo do Woody Allen. O melhor a que consegui chegar foi à modesta possibilidade de que talvez o achasses divertido.

Não sei, e nesta idade da internet, tu me compreenderás, às vezes nem quero saber, se já alguém começou a falar de um jovem Woody Allen e de um Woody Allen tardio. O que sei é que nunca fui muito estimulado por ele, digo, pela sua obra inicial, que vi um pouco levado pela pressão dos pares e depois por um contragosto um pouco masoquista de la culture oblige. Mas, ultimamente - quando é que foi? com o Scoop ou o Match Point? Talvez mesmo já com o Poderosa Afrodite... - dei por mim a achar alguma piada ao Woody Allen. Mas, desta vez, há razões diferentes.

Este último Allen, esta Meia-noite em Paris, és tu em todo o lado. Entre o sorriso rememorativo e a iminência do choro desbragado, passei hora e meia muito divertida (o sketch do Pender, Dali, Ray e Buñuel é magnífico... rinocerose! E tu sabes a minha pancada pelo Buñuel). Mas divago.

Primeiro, claro, Paris. A Paris que foi sempre tua, onde eu fui sempre Londres, como se nos separassem tipos psicológicos inconciliáveis. Mas que nos atraíam por isso. Lembras-te quando fui ver o Francisca, essa tua obra-paixão e te escrevi um postal a dizer que não tinha gostado? Amitié oblige, neste caso. Funcionamos assim, claro. Esta Paris que te fascina, que está ainda por me fascinar e que fascina Allen por razões diferentes, que o filme ilustra à saciedade.

Em primeiro lugar, há o exílio europeu de Allen, que já fez filmes em Londres, outro em Barcelona, e agora Paris. O de Paris é aquele que mais claramente pretende ser um contraponto com um certo  ambiente provinciano e conservador dos Estados Unidos, mesmo tomando como referência Nova Iorque. A Paris de Allen, ou melhor, as Paris de Allen (são três, na verdade) estão construídas para dar uma verdadeira sova de civilização aos Estados Unidos. E, sobre essa sova, há ainda a cereja no topo do bolo: os próprios americanos, foram, ao longo do tempo, sucumbindo aos seus encantos. Como muitas outras nacionalidades. Como tu.

O deslumbramento com Paris começa na cena inicial, um deslumbramento com a Paris-monumento - mais tarde Pender a contrapor Paris à frieza de Neptuno - e termina na Paris-quotidiana, real, das pontes sobre o Sena, passando pela Paris-artística e as suas encarnações, sempre em tom de homenagem à cidade. Nesta homenagem há ainda tempo para episódios, porventura mais ligeiros, que amenizam a luta civilizacional que está montada em pano de fundo e tornam o filme mais rico e complexo. O romance multi-camadas de Eco.

Se fiquei com vontade de ir a Paris? Sim, um pouco. Mas fiquei sobretudo com vontade de conversar contigo. Tu, que, muito antes do Woody Allen, recebeste a epifania de Paris e percebeste as contradições morais dos Estados Unidos (lembras-te quando me recomendaste que visse O Declínio do Império Americano e as Invasões Bárbaras?). 

Um abraço, 
DM


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