o paraíso há-de ser um multiplex sem pipocas
[A partir de agora, sempre à sexta-feira, uma crónica NOITE AMERICANA no MEIA HORA. Esta é a primeira.]
O cinema representa muito mais que a paixão do cinéfilo. Não estão um para o outro como um selo para o filatelista, o Eusébio para o lampião, as canções de natal entoadas por agrupamentos de artistas para o suicida. Seria redutor. O cinema é o desporto, o anti-depressivo, o padrinho de casamento e, enfim, a morte e ressurreição do cinéfilo.
O verdadeiro cinéfilo não é necessariamente assinante dos Cahiers. Não frequenta apenas a Cinemateca e as sessões especiais do King ou as reposições em cópia nova do Nimas. Tem, decerto, muito mais DVDs que o Bergman essencial e a caixa Eisenstein. O cinéfilo (1) gosta de cinema, (2) precisa do cinema, (3) já tentou parar com o cinema, mas deu por si a ver patinagem artística na Eurosport às tardes de domingo e recuou.
Se está sedento dum filminho, ele verá as comédias românticas, as fitas de acção, até os musicais. Quando a morte joga xadrez connosco no Sétimo Selo, a cena não o toca mais que o ET colocando o dedinho de fora do saco mortuário para comunicar que já ligou para casa. Ou o Stallone gritando em sangue no fim do primeiro Rocky.
Para o cinéfilo, o cinema não funciona, portanto, só à laia de animal de estimação dum intelecto. É a única actividade a que ele se dedica com regularidade desde que deixou o coro da igreja aos oito anos numa controversa manobra de rebeldia; é o programa de sexta-feira garantido, mesmo que ninguém telefone; o território seguro para levar raparigas com quem se pretenda vir a estar muito mais vezes no escuro. O cinema é, por fim, a supressão temporária da necessidade de existir. Por duas horas, nada do que façamos importa, não temos rosto, nem voz, nem localização precisa. Um alívio sem preço. (Mesmo que, às vezes, a fita possa ser ainda mais aborrecida que nós próprios.)
AB
[publicado no MEIA HORA de sexta-feira, 09.11.2007]
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